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Sinopse

Um ex-soldado, uma mulher e uma menina fingem ser uma família para escapar da guerra civil no Sri Lanka. Eles acabam se estabelecendo num subúrbio de Paris. Mal se conhecem, mas vão tentar uma vida juntos.

Crítica

A violência é um elemento fundamental no cinema do francês Jacques Audiard, particularmente no que se refere à construção da personalidade de seus protagonistas masculinos. Do pianista de Romain Duris em De Tanto Bater Meu Coração Parou (2005), passando pelo gangster de Tahar Rahim em O Profeta (2009) até o lutador de Matthias Schoenaerts em Ferrugem e Osso (2012), os personagens principais do universo do cineasta lidam de forma bastante íntima com a violência, que, mesmo quando não representada concretamente, parece envolver o ambiente, sempre prestes a se manifestar. Com Dheepan (Jesuthasan Antonythasan), o guerreiro Tamil do Sri Lanka que dá nome a seu novo trabalho, não é diferente.

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Logo em seus planos iniciais, Audiard mostra o protagonista alinhando e ateando fogo aos corpos de seus companheiros, mortos em combate durante a Guerra Civil do país, assim como já ocorrera com sua mulher e filhas. Um sinal claro do percurso marcado pela brutalidade reservado ao personagem. Diante de tanto horror, Dheepan decide fugir do Sri Lanka. Para isso, encontra uma mulher, Yalini (Kalieaswari Srinivasan) e uma garota de nove anos, Illayaal (Claudine Vinasithamby), que se passam por sua esposa e filha. Assumindo as novas identidades, os três conseguem passaportes para viajar até a França, e lá, após meses fazendo bicos para sobreviver, são enviados a um conjunto habitacional de classe baixa na periferia, onde ele passa a trabalhar como zelador e Yalini como empregada de um idoso debilitado.

Mas este ambiente que deveria simbolizar um recomeço, de cara mostra ter mais semelhanças com o passado do qual os personagens tentam se esquecer, do que os próprios gostariam. Em seu primeiro dia no emprego, Dheepan é instruído a não interferir no que ocorre no bloco de apartamentos do outro lado da rua, nem a limpar o salão de entrada do prédio enquanto os traficantes que comandam o condomínio estiverem por lá. Novamente, o trio protagonista se vê em uma zona de conflito onde, apesar da aparente normalidade, o perigo é constante. Do cachorro que surge em meio à escuridão das escadas ao barulho dos fogos na madrugada, que recepcionam o líder dos bandidos locais, Brahim (Vincent Rottiers), Audiard apresenta detalhes que aumentam a tensão deste cenário em plena ebulição.

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Antes que esta fervura atinja seu ponto máximo, porém, o cineasta concebe um envolvente drama familiar, para abordar outro tema recorrente em sua filmografia, a imigração na Europa. Audiard apresenta a miscelânea cultural da França contemporânea, apontando para as dificuldades de adaptação dos imigrantes – a barreira do idioma, o preconceito sofrido pela garota na escola, etc. – e para o esfacelamento do sonho de uma nova vida, que ocorre para boa parte destas pessoas que buscam refúgio em território europeu. Desta relação, o filme também mostra como laços de afeto são criados pela simples necessidade de sobrevivência. Exatamente o que ocorre com Dheepan, que projeta em Yalini e Illayaal a chance de um futuro ao lado de uma nova família que ele fará de tudo para defender. Extraindo grande naturalidade e emoção das atuações de seu trio de protagonistas não-profissionais, Audiard consegue criar a empatia necessária para que o público fique ao seu lado quando a luta pela manutenção deste núcleo familiar gerado à força realmente ocorrer.

Por mais que tentem fugir, os personagens serão convocados para uma nova batalha, pois as marcas de suas raízes não se apagam, como a tatuagem nas costas de Yalini ou o antigo comandante de Dheepan que surge para confrontá-lo. Embate que será o estopim para o despertar do espírito guerreiro adormecido do personagem, que se apresenta tanto como um instinto animal, como algo quase divino – a figura do elefante, que surge em dois momentos do longa, sugere estes simbolismos. Tudo parece encaminhar o personagem para um destino trágico, e a conversa ao celular em que Audiard enquadra Yalini envolta nas sombras é um dos indícios desta tragédia.

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É chegado, então, o momento em que a violência – sempre ela – acumulada durante os atos anteriores se materialize na tela. E é quando Audiard não resiste em trocar o tom de desespero das ações de Dheepan por outro demasiado heroico. Uma escolha de viés dramático discutível, sim, mas que o cineasta consegue superar através de um grande apuro técnico, criando uma sequência visual e emocionalmente impactante. Da inegável força de seu ato final, Dheepan: O Refúgio consegue abrir caminho para um desfecho bem mais esperançoso do que a princípio se poderia imaginar. Prova de que a mudança dentro do universo do diretor é possível, mesmo que sempre seja forjada a sangue.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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