Crítica

A expectativa pelo suspense vai frustrar o espectador de Crime de Amor. Não é que o filme de Alain Corneau não seja capaz de ambientar uma trama de complexidades e nuances, mas justamente por ser uma caricatura desse jogo, dos meandros de sua sistematização, é que ele é mais que sua aparente infantilidade estético-narrativa. A sensualidade da trama é destituída de seu vértice quando Isabelle Guérin (Ludivine Sagnier) entra em conflito com Christine (Kristin Scott Thomas), dona da empresa na qual trabalha. Com alto cargo e bom salário, Isabelle só aspira a manutenção de seu plano de carreira. Christine tem casos esporádicos com outro funcionário seu, Philippe (Patrick Mille), que têm problemas fiscais que colocam sua reputação em risco diante de Christine. Isabelle e Philippe, em uma viagem, iniciam outra relação. Esse ciclo de contatos e toques revela tanto um maniqueísmo estético quanto a ironia do discurso.

Entre a necessidade de criar uma relação dificultada pela própria concepção do trabalho, do comércio e do mercado de ações (e essa é sempre uma tarefa que exige mais do que simplificações e ingenuidades; hoje mais que antes), Alain Corneau planejou um filme de método, isto é, uma experiência plasticamente simples (um desenho de cor robusto, com bastante luz, cenas raramente escuras) aliada a uma dramaticidade pretenciosa pontuada por elementos até bastante surrados pela narrativa de gênero do cinema francês contemporâneo. Mas se a “questão do drama” exposto por Corneau não é criar uma tensão intrínseca aos personagens, como algo que fosse natural a eles e ao ambiente corporativo em que vivem, todavia esses elementos se encaixam sem surrupiar a energia dos clichês mais baratos para si. Tampouco há apelo a caricaturas dessas relações mediadas, sobretudo, pelo poder – o filme é, aliás, muito sobre certas estruturas de posse e autoridade. Há, pois, uma vertigem de mecanismos que estabelecem a força de Crime de Amor, mas não só. Por trás do clima engendrado, é preciso dizer, especialmente por ação do roteiro e da montagem, que a publicidade barata que acompanha o filme não compreende seus efeitos e suas sutilezas.

O tal crime de amor do título está conectado a essa teia de suposições, contratos, firmamentos, bebidas, viagens, apertos de mão, ironias, cinismos e troca de cartões institucionais. Sobre o sexo, não há muito que romantizar. Corneau vai logo ao assunto: as pessoas vão para a cama antes porque sentem desejos do que por qualquer sensibilidade amorosa ou naïf (aviso aos apressados: o amor do título é puro truque, tampouco os crimes são feitos em seu nome). Não existem longas sequências com diálogos vestidos de flertes dos mais esquemáticos como na grande literatura cinematográfica contemporânea. A bem dizer, não deixa de soar debochado o momento em que Isabelle e Philippe iniciam o sexo durante uma viagem de negócios no Egito (uma coisa que, ingenuamente, só está no roteiro para delinear essa relação, mas que funciona no contexto de desmistificação da própria coisa sexual e humana). Numa sequência de pouquíssimos planos, que tem início ainda num jantar, Phillippe atropela a fala de Isabelle tocando agressivamente sobre sua boca. No próximo plano eles já estão no quarto do hotel, rasgando as vestes um do outro e, logo depois, já desfrutam o café da manhã. Em menos de um minuto, transaram, dormiram e comeram. Ao longo do filme, várias momentos que indicam certa tensão são rompidos pela montagem, e é aí que ela funciona.

Mesmo que toda a história não seja dramaticamente sedutora ou politicamente potente, se a negação do sexo é a alegoria para destruição do sistema, Crime de Amor investe na catalisação de seus efeitos. As personagens não são feitas para serem simpáticas ao espectador, as sequências não passam de simulacros resultantes de ações prévias (nunca vemos um acontecimento do início ao fim; as cenas duram pouco tempo), o humor é inexistente enquanto medida de aliviar a pressão do trabalho. Ao contrário: tudo que é filmado representa sua própria putrefação. Trata-se de um jogo de escolhas sempre muito sujas e hediondas criadas justamente para solapar a expectativa do espectador em relação as suas psiques. Crime de Amor pode ser tanto abertamente detestável quanto um filme que intencionalmente sabota sua própria identidade (no sentido superficial) de gênero para rir de seu ridículo.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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