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Sinopse

Eirc é um milionário determinado a cortar o cabelo num espaço que fica do outro lado da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Mas, esse gênio das finanças precisa atravessar as ruas que estão em estado de inflamação.

Crítica

Em seu novo filme, David Cronenberg trata logo de jogar as cartas na mesa. Não muito diferente dos anteriores (em especial nos casos de Senhores do Crime, 2007, e Um Método Perigoso, 2011), mas, em Cosmópolis, não existe mais para onde correr, definitivamente. A megalópole abraça e engole a tudo e a todos. Os espaços se fecharam, as ruas estão tomadas e o caos impera para aqueles que abrem os olhos e decidem reconhecer a si próprios como sujeitos. A câmera já não é capaz de captar os corpos por inteiro, são eles pedaços de si e de outros. Corpos e máquinas se amontoam no emboloramento tecnológico e sistêmico estabelecido. Na abertura, Cronenberg faz em um take tudo aquilo que diversos cineastas parecem buscar a vida inteira: o plano definitivo. A limusine não cabe mais no quadro, é necessário realizar um travelling para conhecermos um mundo em uma imagem – coisa que sinopse alguma pode abarcar; o cinema é sua imagem. A fila de carros iguais, de seguranças, walkie talkies, sistemas de comunicação, sapatos Armani, bolsas de valores, outdoors e armas operam politicamente na moldagem do espaço público. É tudo o que há. Quando entramos na limusine de Eric Packer (nosso protagonista, interpretado por Robert Pattinson) notamos que ela parece se mover mesmo quando está parada. O mundo de Packer não pode cessar, pois é um completo giro sobre si mesmo. De todos os monstros que Cronenberg já dissecou, este é o mais sanguinolento.

Planos fechadíssimos compõem a ação, que é tudo o que há na tela. O esfacelamento dos laços sociais é revogado o tempo inteiro na expressão dura e pálida de Packer: a morte parece ser apenas um conceito distante, inacabado, matéria do pensamento dos outros. Mas a rudeza de sua aparente confecção mental não contrasta com o mundo que explode do lado de fora da janela, a perturbação dos ambientes não é assim tão análoga, uma vez que ambos estão entre a torpeza e o caos. A certa altura do filme, esses dois espaços antagônicos (a limusine e a rua) se chocam mais profundamente no âmbito de uma revolta popular. Com a limusine, internamente, nada acontece, restam apenas arranhões e a sujeira que impregna a carcaça antes reluzente. Se diante da fila de carruagens, Packer não sabia qual era a sua, agora, porém, identifica facilmente – as diferenças estão tencionadas na imagem subjetiva que ela aparenta ter. O poderio de Packer mantém-se, essencialmente, intacto. Cosmópolis é o labirinto pelo qual Packer irá atravessar ao longo de um dia para conseguir um corte de cabelo. Milionário, o jovem empresário vive sob constante contingência: o mercado de ações é aleatório, pois nenhum movimento depende do outro, são completamente independentes.

O tempo escorre vulnerável, irrefreável, intocável. Ao longo do trajeto até o cabeleireiro, Packer faz alguns movimentos errados e acaba perdendo muito dinheiro. Mulher, amantes, médicos, amigos e policiais são alguns dos personagens que passarão alguns instantes em seu mundo e presenciarão sua falência. Falência que apresenta duas formas, a financeira e a espiritual. Mas, em Cronenberg, a exemplo de sua obra passada (A Mosca, 1986; Videodrome, 1983; e Scanners, 1981, também extirparam da carne humana de seus personagens toda a intimidade possível) a morte do espírito não é a ausência da alma, mas a falta de poder coercitivo. Se perder dinheiro significa perder um pouco da própria pele, a vida se esvai quando Packer descobre que sua próstata é assimétrica. As relações não engendram mais a mesma força, a câmera não enquadra mais somente os rostos amedrontados, o sexo é captado em seus intervalos e em meio a jogos sádicos. Se o registro se afasta para delinear uma mudança de ordem econômica (e as relações de poder se passam fortemente nessa esfera), também a narrativa demonstra captar essa tensão: do ambiente estranho do interior da limusine, passamos a frequentar camas de hotéis e bares quaisquer, onde Packer perfila seus desejos pétreos e suas aflições derradeiras. Mas nada é assim tão líquido, o sistema não se quebrou ainda.

Cronenberg filma esse mundo como ele se oferece, com longas sequências expositivas, que são quase cômicas em meio a tanta seriedade. Como bom observador, permite que o drama confesse suas facetas. A estética é toda ela fruto dos momentos e das disputas: quando a conversa é sobre sexo, os corpos se aproximam e os planos se fecham, quando o tópico é o capital especulativo, as cortinas se abrem e os ratos aparecem, quando o que está em questão é o futuro, o mundo se alarga do lado de fora com os protestos em larga escala. Em muitos casos, Packer não oferece respostas. O que importa é o corte de cabelo, algo tão trivial, e sua próstata.

Sua namorada, a qual encontra diversas vezes e vai logo lhe pedindo sexo (o coito é a metáfora dos desejos mais infantis que a mecanização lhe impôs, pois transar, aqui, é necessário para os momentos de lazer), diz: “você sabe coisas, acho que é isso que você faz”. Packer quer algo que ainda não conhece, quer mais, não quer o modelo padrão. O ritmo de multiplicação é ele mesmo espaço para suas vontades maculadas. Cronenberg, adaptando o livro homônimo de Don DeLillo, não se cansa em enfatizar que a figura que está a simbolizar é o cybercapital. A narrativa é desarticulada em relação à putrefação dos movimentos que o protagonista toma, sendo cada um deles independente dos outros e o conceito de risco é abandonado em defesa da confiança excessiva – logo o risco vem agora cobrar seu preço. Não tal como aqueles filmes sem lacunas que se pretendem definidores do mundo, Cosmópolis é um lugar de mistérios e vazios, todo elegante em sua doentia complexidade.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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