Crítica


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Sinopse

Famoso por sua valentia e crueldade equivalentes, o cangaceiro Corisco rapta Dadá, menina de 12 anos de idade. Após estupra-la, faz dela esposa e membro do cangaço. Enquanto isso, o chefe da polícia volante deseja mata-lo.

Crítica

Em 1996, quando Corisco e Dadá foi lançado, o cinema brasileiro experimentava uma sensação auspiciosa de retorno e reaquecimento. A fase conhecida como Retomada sucedeu o cenário de terra arrasada ocasionado pela extinção da Embrafilme e de diversos outros órgãos que produziam/distribuíam/legislavam/regulavam a atividade cinematográfica. O então presidente Fernando Collor de Mello decretou uma paralisação violenta com a famigerada canetada de 16 de março de 1990, isso sem abrir qualquer discussão sobre alternativas de modelos questionados por supostamente serem obsoletos. Mas, assim como o nordestino que é, segundo Euclides da Cunha em Os Sertões, “antes de tudo é um forte”, a Sétima Arte com sotaques e tons verde-amarelos sobreviveu a mais essa tentativa de homicídio – foram várias desde 1896 quando imagens em movimento chegaram por essas bandas. O longa-metragem assinado pelo cineasta cearense Rosemberg Cariry foi buscar no passado de glórias e controvérsias do cangaço uma história de amor e fúria, a trajetória de Corisco e Dadá. Curiosamente, Lírio Ferreira e Paulo Caldas lançaram Baile Perfumado (1996) no mesmo ano. E as duas produções dialogam em vários sentidos e aspectos, dos personagens iguais à mesma época em que ambos se passam. Apesar de diferenças de perspectiva, esses longas celebram o futuro ao olhar para trás.

Corisco e Dadá é contado em tom de fábula, de lenda mantida pelo povo que perpetua oralmente feitos banhados em sangue e valentia. Regina Dourado é uma espécie de Xerazade que narra aos ouvintes do presente o que aconteceu nos tempos em que cangaceiros ziguezagueavam pelo poeirento sertão nordestino como agentes/sintomas de um mundo contraditório e inclinado à brutalidade. Assim, tudo o que vemos é fruto desse prisma poético, dado a floreios para resgatar figuras e passagens com tintas míticas. Existe uma tensão entre o realismo de certas ações e reações condicionadas pela miserabilidade e a fabulação que torna espessos os contornos épicos do amor improvável iniciado com violência. Há cenas de conversas aparentemente banais alternadas com outras de cunho mais simbólico, como quando cangaceiros e membros da polícia volante se aproximam simultaneamente da poça d’água que pode aplacar a sede, independentemente das rivalidades. Corisco (Chico Diaz, de desempenho notável) é um dos principais nomes do bando de Lampião – o mesmo personagem vivido por Othon Bastos em Deus e O Diabo na Terra do Sol (1964). Em vez de cobrar a dívida com sangue, ele sequestra a filha do devedor. Dadá (vivida por Maira Cariry na adolescência e Dira Paes na fase adulta) é estuprada e tem a inocência estraçalhada abruptamente. É obrigada a se tornar cangaceira.

Rosemberg Cariry não se demora em contextualizações, mas acrescenta nas entrelinhas de alguns diálogos informações imprescindíveis para o espectador compreender o fundamental da condição dos cangaceiros. Interpretado de maneira fabril por Chico Diaz, Corisco é carregado de incongruências. É capaz de um ato atroz, tal como violentar a adolescente e obriga-la a viver matrimonialmente durante a vida inteira com alguém que a desgraçou, mas também de demonstrar afeto ao esforçar-se para Dadá aprender a ler, saber atirar e assim ganhar autonomia. O desenvolvimento de Corisco e Dadá não é orientado estritamente por esse vínculo ressignificado ao ponto de conter doses de carinho e preocupação mútua. O filme é uma soma de fragmentos e elipses montados com tamanha destreza por Severino Dada que prevalece a sensação de que as coisas não evoluem no sentido clássico. As etapas da jornada dos cangaceiros e a exasperação que agita o protagonista masculino são frações de um ciclo interrompido somente pela morte. Ainda que ocasionalmente personagens digam onde estão e o que os movem, as atenções são renovadas em torno de gestos, discursos, frustrações, em suma, das minúcias inerentes a uma realidade que consome os ideais de felicidade. Não há espaço para amores redentores ou arrependimentos, até por isso o vínculo de Corisco e Dadá é singular.

Embora o filme se chame Corisco e Dadá, o protagonismo é bem mais masculino. Chico Diaz tem à sua disposição uma quantidade mais abundante de circunstâncias para sobressair e demonstrar o seu vasto repertório. E ele responde com a construção de alguém fascinante. Corisco é irascível, calejado pelos obstáculos do sertão, capaz de assassinar a sangue frio delatores e na cena seguinte colocar a própria vida em risco se isso representar a sobrevivência de Dadá. Rosemberg dá ao ator instantes preciosos para expressar uma fúria incontida, sendo um dos principais deles a Oração do Credo repleta de dor. A prece vira uma ladainha subversiva da fé que rege homens e mulheres através da caatinga. A imprevisibilidade do cangaceiro passa pela composição corporal minuciosa de Chico, pela forma como ele alterna a sutileza e o exagero para expressar, às vezes, as mesmas sensações. Já a Dira Paes cabe um papel mais resignado, no qual prevalecem os silêncios, os meneios hesitantes e a obrigação de conformar-se. Vagarosamente, Dadá se torna menos passiva, nas palavras da narradora, porque “seu coração endurece em busca de sobrevivência”. Embora o longa não seja um tratado sobre os personagens, já que bem mais interessado neles como agentes histórico-sociais, a direção confere espaço suficiente e generoso para os intérpretes desenharem homens e mulheres profundos.

De certa maneira, Corisco e Dadá é um filme de estrada, mas sem promessas de recompensas, aprendizados ou remissões. Os protagonistas passeiam por terras inóspitas carregando a própria existência como fardo. Em alguns momentos, são agentes questionadores, noutros, precarizados como meras testemunhas impotentes. A cena do batizado de mais um menino que viria a morrer – a não sobrevivência da prole é apresentada como sina – flerta abertamente com a teatralização, vide a empostação da fala do beato e os figurinos. Rosemberg Cariry busca inspiração na densidade das tradições nordestinas, não apenas quanto à abordagem de personagens históricos que marcaram época na região. Ele acena ao cordel para fazer cinema, emprestando dos poemas populares as suas engrenagens elementares para recontar a história enraizada profundamente no imaginário nordestino. Regina Dourado pode ser vista como uma cordelista incumbida da tradução dos fatos históricos em verso e prosa. Por isso o cineasta habilmente confere verniz lírico à encenação do que ela diz. À medida em que os personagens caminham à danação, fica ainda mais evidente o apreço da câmera pela geografia abrasiva desse sertão que se tornou um espaço de trânsito de fantasmas e lendas. Nessa terra seca e árida, a justiça social é reivindicada e a brutalidade aplacada por amores possíveis como mandacarus em flor.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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