Crítica

Constatamos com muito pesar que as informações trazidas pelo diretor Adam Sobel em A Copa dos Trabalhadores não deveriam surpreender, pois vivemos numa época em que mão de obra barata não passa longe do conceito antes conhecido como escravidão. Marcas de roupas famosas já foram denunciadas pelos salários baixíssimos pagos e pelas condições laborais desumanas. No caso específico deste documentário, acompanhamos imigrantes obrigados a se sustentar no mesmo emprego, sem possibilidade de voltar para casa ou sair do local de trabalho sem permissão (mesmo fora do seu horário). Tudo isso para garantir que os estádios da Copa do Mundo do Catar, em 2022, estejam prontos. Asiáticos e africanos, muitos deles perseguindo um sonho e enxergando tarde demais a realidade da sua condição, são utilizados praticamente como escravos. Sem direito de regressar para suas famílias – ou de levá-las junto consigo –, eles têm pouco o que almejar. As coisas parecem melhorar quando um campeonato de futebol que reúne operários de empresas do local é criado, acabando por servir de válvula de escape para aqueles sujeitos. Uma artimanha dos empresários para mantê-los minimamente motivados, como um dos depoentes apropriadamente observa.

Acompanhamos no documentário a trajetória de alguns desses trabalhadores, seus anseios, problemas e objetivos. Um deles, Kenneth, foi ao Catar por acreditar que teria qualquer chance como jogador de futebol profissional. O sujeito que conseguiu a vaga de emprego para ele o enganou, não revelando que seria impossível estar livre no país para buscar diferentes oportunidades. Todos os operários que trabalham na GCC – empresa retratada no doc – são totalmente dependentes da “boa vontade” da empresa. Só podem sair do local de trabalho com autorização – que nunca vem –, são alimentados no refeitório próprio e seu alojamento é dentro dos chamados “work camps”. A proximidade com a expressão “campo de concentração” não parece ser coincidência. Mesmo assim, certos operários sonham com o dia que sairão dali, visitarão suas famílias ou perseguirão sonhos de um futuro melhor. De ser útil, como afirma um dos rapazes.

A expressão “futebol como ópio do povo” poucas vezes pareceu tão acertada como aqui. Durante a Copa dos Trabalhadores, formou-se um time dentro da GCC, com direito a capitão (o supracitado Kenneth) e horário para treinamento. Esse pedido foi realizado por Kenneth, depois do time ter perdido por 5x1 para a empresa Outlook, já no primeiro jogo. “Não podemos continuar sem treinar”, falou, resoluto, o então capitão. A empresa cedeu e permitiu o treinamento, com o resultado sendo visto em campo, e no campo de trabalho. A GCC conseguiu passar de fase na Copa, graças ao comprometimento dos jogadores em fazer seu melhor.

O que deixa a história horrivelmente triste não é o destino do time ou as possíveis derrotas que eles podem sofrer dentro das quatro linhas, mas o fato deles serem manipulados pelos empresários para esquecer as condições terríveis de trabalho ao se sentirem heróis do esporte. Esse senso de propósito incutido na cabeça dos funcionários da GCC certamente os impede de insurgir-se contra o status quo. O documentário mostra que alguns conseguem sair da situação, atacando seus colegas trabalhadores, dizendo serem loucos ou desequilibrados. Pouco provável que voltem para casa. Mais certo que fiquem mantidos em presídios, dada a realidade ali mostrada.

Adam Sobel faz um importante retrato de uma situação desumana, tendo acesso ao interior daquela empresa. Visto com certa distância, pode não parecer ruim. Todos têm sua cama, seu local de trabalho, seu dinheiro no final do mês. Tudo parece limpo e correto. Mas a falta de liberdade em poder viver sua vida, desistir do trabalho e procurar outras oportunidades deixa tudo sórdido demais. E isso está longe de acontecer somente no Catar, debaixo dos olhos da FIFA ou da ONU. Por mostrar essa realidade, A Copa dos Trabalhadores é um filme triste, porém essencial.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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