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Sinopse

Um aventureiro francês é aprisionado pelos Tupinambás e acaba sendo escolhido para um ritual antropofágico. Através da magia, os índios esperam adquirir suas habilidades com as armas de fogo.

Crítica

O Manifesto Antropofágico escrito por Oswald de Andrade, marco do movimento modernista brasileiro da década de 1920, propunha a deglutição (transfiguração) da cultura estrangeira, unida a um resgate do primitivismo cultural brasileiro – das raízes indígenas e afrodescendentes – como meio para a criação de um produto de caráter genuinamente nacional. Esses preceitos, bem como elementos do Tropicalismo e outras vertentes artísticas influenciadas pelas ideias de Andrade, estão fortemente presentes em Como Era Gostoso o Meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos. Expoente do Cinema Novo, movimento que à sua maneira também reinterpretava o pensamento antropofágico aplicado à sétima arte, o cineasta realiza uma viagem ao século XVI para revisitar os primeiros passos da formação de nosso país.

A trama se passa em 1594, quando um aventureiro francês (personagem sem nome interpretado por Arduíno Colassanti) é lançado à morte pelo comandante de seu grupo. Após conseguir escapar, ele é capturado por índios Tupinambás que o tomam por português e o levam prisioneiro para a tribo. Como os portugueses são aliados dos Tupiniquins – e, portanto, inimigos dos Tupinambás – o homem é condenado a ser devorado em um grande e aguardado ritual. Baseando-se em relatos reais de viajantes como o francês Jean de Léry e, principalmente, em Viagem ao Brasil, do alemão Hans Staden, Pereira dos Santos busca desmistificar a imagem do índio brasileiro, quase sempre trabalhada de forma caricata e estereotipada, apresentando uma abordagem realista e distante da visão eurocêntrica quase sempre imposta neste tipo de história.

Apesar do francês sem nome ser considerado o protagonista, é através do olhar dos Tupinambás que acompanhamos o desenvolvimento da narrativa. Segundo as tradições, o ritual canibal só deve ser realizado após oito luas e, durante este período, o prisioneiro passa a viver como se fora um membro da tribo, ficando aos cuidados de uma índia, Seboipepe (Ana Maria Magalhães), que se torna sua esposa. Desta forma, presenciamos uma inversão de papéis: ao invés do colonizador impor seus costumes aos selvagens, é ele quem acaba imerso na cultura nativa. Assim, em pouco tempo, o francês passa a andar nu, corta seu cabelo e barba, aprende a usar arco e flecha, e a viver do que a natureza lhe oferece.

Ainda que a transformação não seja completa, já que o protagonista mantém traços de sua personalidade – como a ganância vista na disputa por ouro que trava com o comerciante aliado dos Tupinambás – além de persistir planejando sua fuga e de tentar ganhar mais tempo de vida em troca da pólvora que oferece ao cacique, essa assimilação cultural dialoga diretamente com o conceito antropofágico de Oswald de Andrade. Uma ideia que se completa com o próprio ato ritualístico, no qual o inimigo é devorado para que se possa adquirir sua força e seus conhecimentos. Todas as metáforas sobre esta relação culminam na belíssima sequência em que Seboipepe explica passo a passo ao “marido” como ele deve se comportar durante a cerimônia. Um momento de aceitação em que o temor e o prazer se confundem, numa noção realmente mais compreensível aos franceses, que denominam o orgasmo de La petite mort (“a pequena morte”), por exemplo.

O registro de Nelson Pereira dos Santos, como dito anteriormente, busca um tom naturalista alcançado através de um trabalho de câmera que acompanha o cotidiano dos índios, das festas às batalhas, de modo quase documental. Outro elemento-chave são os diálogos em tupi – transcritos do roteiro original por Humberto Mauro – que preservam este sentimento de veracidade. Somada a isso temos a trilha sonora de Zé Rodrix - composta por flautas, tambores e cânticos típicos – além da nudez completa de todos os atores em cena – que apesar de não ser erotizada causou ao filme problemas com a censura. O cineasta só foge desta proposta na sequência inicial do longa, quando apresenta um trecho de uma carta do comandante Villegagnon a Calvino, na qual, ironicamente, as imagens contradizem por completo as palavras da narração em off.

Diferente de Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, filme com o qual guarda certo grau de parentesco, o viés satírico de Como Era Gostoso o Meu Francês fica basicamente restrito à cena de abertura – outras cartelas citando textos históricos de personalidades como Padre Anchieta e Mem de Sá são inseridas, mas sem uma função cômica tão direta. Talvez a continuidade dessa ironia faça falta durante o resto da projeção, assim como uma carga dramática que aproxime mais o espectador dos personagens. Nada, porém, que tire o valor da obra de Nelson Pereira dos Santos como um retrato raro da história do Brasil e da cultura indígena no cinema. Ao despir seu trabalho de clichês como o do nativo ingênuo ou o do selvagem ameaçador, o diretor coloca índios assumindo um patamar de igualdade com os europeus e enfrentando a luta para manter viva a sua história.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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