Crítica

A revolução cultural foi uma campanha político-ideológica imposta por Mao Tsé-Tung, líder do Partido Comunista Chinês, na década de 60. É nesse período que se passa Coming Home, filme do cineasta Zhang Yimou, que inicia mostrando os ensaios de uma peça de balé cuja mensagem propagandista pró-partido evidencia a utilização da arte como um dos instrumentos de convencimento da população. Antes confinado num campo de trabalho forçado em virtude de ideias consideradas subversivas (leia-se de oposição), Lu Yanshi (Chen Daoming) consegue uma brecha e escapa, tentando depois de muitos anos manter contato novamente com sua mulher, Feng Wanyu (Gong Li), e com sua filha, DanDan (Zhang Huiwen). Maltrapilho, incógnito das autoridades que o procuram, ele se aproxima delas aos poucos.

Enquanto isso, DanDan ensaia ardorosamente em busca do papel principal no balé. Completamente alinhada aos ideais do partido, ela nem se sensibiliza com a possibilidade de rever o pai, e, o que é pior, o entrega às autoridades no instante em que ele reencontraria sua mãe. Essa traição se dá um pouco por ela ter perdido uma grande chance em virtude de sua filiação, ou seja, por vingança, e outro tanto em consequência da fidelidade à doutrina que coloca o partido em primeiro lugar, mesmo quando a outra opção é a integridade de alguém próximo. Então, ainda que Coming Home seja focado num drama familiar, a situação político-social da China é repassada com olhos críticos que ressaltam o lado mais desumano da estrutura que fazia dos cidadãos meros soldados a serviço de um projeto ideológico.

Os anos passam, algumas restrições são revogadas, e Lu Yanshi volta para casa, inclusive com o aval do governo que o considera “curado”. O que poderia ser um momento de alegria, afinal a família está novamente reunida, se torna o início de mais martírio. Em decorrência de um trauma, Feng Wanyu é acometida por amnésia parcial e, além de perder memórias recentes, não reconhece Lu Yanshi. Ela se recorda somente da figura do marido, tanto que alimenta esperanças de sua volta, mesmo tendo ele afirmando a própria identidade ao seu lado. Dandan, por sua vez, é banida pela mãe que não perdoa a traição. Contudo, será a garota a maior aliada de Lu Yanshi na tarefa árdua de fazer a esposa ver nele o homem com quem casou há mais de 20 anos. Yimou constrói essa tragédia de contornos irremediáveis sem vergonha de ir fundo na emoção, realizando um filme muito bonito e ao mesmo tempo bastante triste.

A luta quixotesca de Lu Yanshi é admirável. Suas tentativas de reverter o quadro amnésico da esposa remetem à valorização do indivíduo, de si e do outro, numa postura diametralmente oposta ao ideal uniformizador pregado pelo regime que vê as pessoas apenas como peças dos ditames governamentais. Yimou extrai força dos sentimentos em questão, sobretudo do amor e da compaixão, evitando a lágrima fácil, fazendo com que tudo soe genuinamente melancólico e não construído esquematicamente para nos fazer chorar. Coming Home é político, pois assume o lado daqueles contrários à rigidez do sistema imposto pelo Partido Comunista Chinês, denunciando seus efeitos colaterais, diluindo-os no percurso acidentando e trágico dessa família marcada pela dor em suas mais diversas formas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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