Crítica

Além de ter sido prolífica em adaptações cinematográficas da obra de Stephen King, a década de 1980 também foi marcada pelo surgimento de diversas sagas emblemáticas de terror, como Sexta-Feira 13, A Hora do Pesadelo, Hellraiser e A Hora do Espanto. Ainda que se encontre abaixo dessas na escala de representatividade, Colheita Maldita também conquistou seu lugar entre os fãs do cinema de horror oitentista, gerando sete sequências – das quais somente a segunda parte foi lançada nos cinemas, sendo as outras produzidas diretamente para o mercado de vídeo – além de uma refilmagem televisiva. Baseado no conto As Crianças do Milharal, extraído da antologia Sombras da Noite, de autoria de King, esse primeiro exemplar, dirigido pelo então estreante Fritz Kiersch, abre com um flashback narrado pelo pequeno Job (Robby Kiger).

Esse prólogo acompanha um dia comum na fictícia Gatlin, Nebraska, cujo clima pacato é quebrado repentinamente por uma série de acontecimentos macabros orquestrados pelo misterioso Isaac (John Franklin). Entre eles, um massacre cometido na lanchonete local por um grupo de jovens armados de foices e facões, do qual apenas Job é poupado. A trama, então, salta três anos no tempo para apresentar os protagonistas: Burt (Peter Horton), médico recém-formado prestes a iniciar sua residência, e Vicky (Linda Hamilton) sua namorada. Na estrada, eles atropelam um garoto que tentava fugir da seita de Isaac e, ao buscar socorro, acabam sendo tragados enigmaticamente para Gatlin, hoje uma cidade abandonada, onde todos os adultos foram mortos e as crianças vivem como uma comunidade religiosa próxima às plantações de milho.

Após o impacto da bem construída cena de abertura, com o registro da sangrenta carnificina e a apresentação breve não só de Isaac, como de seu fiel, e igualmente sinistro, escudeiro, Malachai (Courtney Gains), além da sequência de créditos ilustrada pelos desenhos premonitórios de Sarah (Anne Marie McEvoy), irmã de Job, Kiersch permite que a densa e promissora atmosfera estabelecida seja diluída gradativamente. Os motivos para essa queda são vários, como o fato do cineasta não se aproveitar plenamente da ótima ambientação rural – as ruas desertas, habitações infestadas de espigas de milho – ou ainda a falta de contexto dado aos acontecimentos peculiares que permeiam a trama. Ainda que o desconhecido seja um fator primordial na construção do mistério, a transposição do conto relativamente curto de King para um longa-metragem revela um roteiro repleto de lacunas nunca explicadas.

Kiersch, juntamente com o roteirista George Goldsmith, falha ao não se aprofundar nas raízes do culto de Isaac – de onde ele veio, suas regras, seus símbolos, como exerce poder sobre as crianças – deixando de criar uma mitologia densa e clara. Percebe-se também uma indecisão entre trabalhar um terror mais calcado na realidade – que poderia abordar enfaticamente o controverso tema do fanatismo religioso – ou se entregar de vez ao elemento sobrenatural que paira sobre a narrativa – os planos de nuvens negras que surgem de repente, a cena quase kafkiana em que as placas guiam Burt e Vicky através do milharal até Gatlin, cidade que inexplicavelmente ausente dos mapas. Algo que não soa como feito intencionalmente para confundir o espectador, mas sim, como pura hesitação.

A destreza limitada de Kiersch para a encenação do suspense esvazia quase por completo o potencial de diversas passagens, como o assassinato do dono do posto de gasolina, que resulta previsível e desprovido de tensão, como quase todo o resto do filme. A explicação oferecida para que o personagem tenha sido mantido vivo até então – a necessidade de Isaac e seu séquito por combustível – soa inconvincente, enquanto outros elementos interessantes, como o dom de Sarah, terminam sendo subaproveitados. A construção dramática também é problemática, oferecendo muito pouco para Hamilton e Horton desenvolverem a relação de seus personagens. Há momentos esporádicos de terror e sustos genuínos, como o devaneio de Vicky com o garoto atropelado, bem como outros acertos: a valorização das belas paisagens, a utilização de antigas canções e, especialmente, determinadas escolhas do elenco.

Gains e Franklin, com suas fisionomias peculiares – um esguio e ruivo, o outro portador de uma condição especial que o mantém com uma aparência infantil, mesmo sendo bem mais velho – ajudam na composição de Malachai e Isaac, ostentando atuações caricaturais divertidas. Infelizmente, o nível dos outros atores-mirins é bastante irregular, algo notado conforme o longa se aproxima de uma resolução apressada, truncada, em que a lógica não predomina, e estes ganham mais tempo de tela. Assumindo de vez o aspecto fantástico da história ao revelar a manifestação “Daquele que Caminha por Trás da Plantação” – a entidade à qual a seita de Isaac é devota e realiza sacrifícios – Kiersch almeja um desfecho de grandes proporções, que termina por esbarrar no orçamento limitado da produção, apresentando efeitos especiais precários até mesmo para a época. O plano derradeiro exemplifica a falta de timing do cineasta e realça a ausência do impacto pretendido. Com isso, o resultado de Colheita Maldita fica bastante aquém da potencialidade – estética e atmosférica – de seu início e, ainda que seja compreensível sua relevância dentro do gênero nos anos 80, a revisão faz com que soe datado e empalideça na comparação com outras franquias do mesmo período.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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