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Sinopse

Clarisse é afetada por lembranças e sentimentos sombrios. Ela tem ressentimentos com o pai e há um futuro incerto a sua frente com o marido.

Crítica

A cena inicial causa forte impacto. Uma imponente pedreira vem parcialmente abaixo pela intervenção humana. Dois cortes nos levam, respectivamente, à imagem de um idoso na banheira e ao sexo burocrático em que a mulher, de olhar vidrado, não demonstra sequer o mínimo prazer. Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois alterna habilmente essas metáforas e ocorrências literais para nos jogar numa realidade mediada pelo rancor e a iminência da morte. Entretanto, o semblante inalterável de Clarisse (Sabrina Greve), antes de se apresentar como máscara imobilizada pela dor de um passado, amortece a empatia que poderíamos ter pela personagem. Na conversa repleta de animosidades com o marido e no reencontro com o pai a fisionomia dela é a mesma, efeito certamente proposital, mas que traz consigo uma frieza venosa até mesmo ao clima de terror que toma conta do filme.

De seu trabalho anterior, o excelente Mãe e Filha (2011), com o qual esta realização ajuda a compor a chamada Trilogia da Morte, iniciada com O Grão (2007), o cineasta Petrus Cariry conserva o retorno da filha pródiga que busca acertar contas com o outrora sofrido, período representado não apenas por um dos progenitores, mas também pela casa de parte da infância, cenário impregnado de lembranças nem sempre boas. Clarisse vaga como zumbi pela propriedade do pai, interpretado por Everaldo Pontes, provocando os fantasmas familiares para que eles se mostrem, denunciando a presença de chagas ainda abertas. A câmera de Petrus desliza paulatinamente por corredores mal iluminados, evidenciando uma tensão reforçada pela música e pela interação truncada dos personagens. A palavra em Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois é carregada de solenidade, distanciando-se, assim, do coloquial, adquirindo contornos de recitação.

A relação entre pai e filha ganha ares de tragédia com a exumação das mágoas enraizadas. A arrogância do homem é apontada como principal responsável pela ruína familiar. Enquanto o sangue jorra em situações inusitadas, a decrepitude do corpo fica cada vez mais clara como castigo. Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois possui uma atmosfera carregada, algo que Petrus consegue em virtude de sua habilidade no trato dos elementos da linguagem cinematográfica. Os vigores da montagem, do som e da imagem propiciam a construção de uma moldura densa, mas que, infelizmente, não encontra ecos nem sustentação no recheio da trama que coloca em choque dois seres sorumbáticos caminhando em direção à própria danação. O marido de Clarisse, vivido por David Wendefilm, é uma figura decorativa sem qualquer outra função, senão a de deflagrar o torpor dela fora do âmbito parental.

Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois pretere o aprofundamento dos dramas pessoais em função da sensação crescente de terror. Sem encontrar pontos de equilíbrio, Petrus se atém demasiado à forma, não a estofando de conteúdo à altura. A criada que cuida do patrão, a filha que remói eventos de antes como partes indissociáveis de sua agonia presente, o velho acossado pela proximidade da morte, são personagens sufocados pelo privilégio diretivo dado à expressividade do cenário, ao perigo encrustado em cada parede e curva. Algumas passagens que reforçam a fragilidade do roteiro – vide o diálogo sobre vagalumes – tratam de enfraquecer o todo, diminuindo sensivelmente nosso interesse e adesão a essa narrativa farta de potencial.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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