Crítica

Dois anos após o premiado Cartel Land (2015), que examinava os conflitos decorrentes do tráfico de drogas nos dois lados da fronteira entre Estados Unidos e México, o documentarista norte-americano Matthew Heineman volta suas lentes para outra zona de grande risco no mundo: a cidade de Raqqa, na Síria, ponto nevrálgico da tomada de poder dos extremistas do Estado Islâmico que, em março de 2014, fizeram da localidade sua “capital”. Em Cidade de Fantasmas, estes acontecimentos são retratados através do olhar dos integrantes do Raqqa Is Being Slaughtered Silently (RBSS), grupo de jornalistas sírios que desafiam as imposições do califado jihadista para expor ao resto do mundo a realidade cruel de pobreza, destruição, mortes e terror que assola sua cidade natal.

Abrindo o documentário com imagens de uma premiação concedida ao RBSS em Nova York, Heineman retrocede a 2012, auge dos protestos da Primavera Árabe que, na Síria, visavam a derrubada do regime ditatorial do presidente Bashar al-Assad, quando boa parte dos futuros membros RBSS iniciaram suas atividades, cobrindo as manifestações e, posteriormente, a entrada à força do Estado Islâmico na cidade. Formado não só por jornalistas de origem, mas também por homens comuns, como um professor de matemática, e jovens que nem sempre se interessaram pelo engajamento político, aos poucos, o RBSS passou a ser combatido pelo EI, que proibiu qualquer tipo de registro audiovisual não autorizado, punindo a atividade com execuções sumárias e levando a maior parte dos jornalistas a fugir da Síria.

Exilados em parte na Turquia, fronteira mais próxima, e na Alemanha, eles formaram suas bases de comando, contando com a ação de informantes que arriscam suas vidas para enviar informações e abastecer o site do grupo diariamente com vídeos, fotos e atualizações a respeito da situação da população de Raqqa e das ações do califado. O objetivo do RBSS, assim como o de Heineman com seu documentário, é apresentar ao maior número possível de pessoas uma realidade pouco comentada, encoberta pela atenção dada aos ataques terroristas de autoria do EI ocorridos na Europa e aos confrontos entre extremistas e o governo Assad. Para capturar a atenção desejada, o cineasta não poupa o público do registro impactante das atrocidades cometidas pelo Estado Islâmico – execuções em praça pública, decapitações, crucificações – que inevitavelmente geram desconforto e indignação.

Mesmo de difícil assimilação, a apresentação destas imagens se mostra legítima para a compreensão do contexto geral e, portanto, não soa como um apelo à gratuidade. Afinal, essa é apenas uma parte complementar da abordagem, que busca também humanizar a figura dos jornalistas responsáveis por tais relatos. Ao acompanhar seu cotidiano no exílio, dando nomes, mostrando rostos e revisitando passados, Heineman estabelece uma atmosfera constante de tensão, incitada pela noção de que tal exposição possa torná-los alvos ainda mais visados pelo Estado Islâmico. Uma sensação que se acentua quando acompanhamos a reação dos jornalistas ao receberem a notícia do assassinato de um de seus mentores, na Turquia. Sem interferir diretamente, o cineasta abre espaço para que os personagens discutam e confidenciem livremente, revelando suas angústias e aspirações, assim como seu método de trabalho.

Desta forma, Heineman mergulha também nos meandros da imprensa de guerrilha, que com celulares e computadores – mesmo em meio às dificuldades impostas pelo EI, como a destruição de todas as antenas parabólicas de Raqqa para reduzir o alcance do sinal de satélite – conseguem transmitir a informação desejada. Em tempos em que o papel da imprensa é cada vez mais discutido, com a banalização da profissão e a contestação de sua idoneidade, o trabalho destes cidadãos transformados em profissionais pelo extremismo das circunstâncias, que colocam a missão de disseminar a mensagem sobre o sofrimento de seu povo acima de sua segurança, ganha ares de heroísmo, e não sem méritos. Deste cenário, Heineman extrai momentos dramaticamente arrebatadores, como aquele em que dois irmãos integrantes do RBSS assistem ao vídeo de execução de seu pai, capturado pelo EI.

A utilização da mídia pelos extremistas, por sinal, é destacada pelo documentário, quando os jornalistas explicam a Heineman as táticas do EI para manipular informações sobre a vida em Raqqa, bem como para recrutar jovens e crianças, através de vídeos superproduzidos, que emulam a estética dos filmes de ação hollywoodianos e dos videogames. Ainda que por vezes deixe cair o nível de envolvimento do espectador, com passagens por situações triviais que pouco acrescentam, ou com a repetição excessiva de nomes e localizações já estabelecidas, Heineman consegue habilmente balancear o aspecto emocional e o investigativo/informativo, mantendo o vigor do conjunto e contribuindo para uma compreensão mais ampla da complexa situação da Síria. No entanto, o maior mérito de Cidade de Fantasmas está em não perder contato com o fator humano. Nas imagens do nascimento de um filho ou na confraternização após a premiação em Nova York, Heineman não nos deixa esquecer que, para além dos corajosos jornalistas, existem homens com sonhos e desejos de mudança, mas oprimidos pelo medo – algo sintetizado na imagem do jornalista que treme desesperadamente em seu depoimento solitário para a câmera. Homens atormentados pela barbárie, que, não raramente, terminam transformados em fantasmas tão emocionalmente devastados quanto as ruínas de Raqqa.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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