Crítica

O título acima não é meu. Está no trailer de Cidadão Boilesen filme vencedor do Festival É Tudo Verdade de 2009. Convenhamos é um título pra lá de apropriado. Sinto que temos a obrigação de ver, falar, refletir sobre a obra em questão. Eu confesso: nenhum filme que vi antes sobre a ditadura no Brasil, é mais marcante. Cidadão Boilesen precisou de 15 anos para ser concluído. Um tempo acima da média para um documentário. Esses 15 anos de pesquisa foram muito bem aplicados. O cidadão em questão se chama Henning Albert Boilesen (1916 – 1971), um empresário dinamarquês que se naturalizou brasileiro. Competente, bem sucedido e respeitado, foi diretor-presidente do Grupo Ultragás, circulou simpático e altivo nas rodas do poder. Ainda no seu currículo consta a criação do CIEE.

Imparcialmente conhecemos os dois lados da vida de Boilesen. Primeiro o lado do estrangeiro que venceu no país e lógico, amava as belezas brasileiras. Isso dura pouco. Durante esses instantes iniciais, chamou minha atenção filmagens antigas de eventos sociais, fotos alegres e descontraídas onde o olhar do “gringo” carrega uma frieza, uma bad vibe. Quando o filme revela a outra face do empresário, tomamos conhecimento o que havia por trás daquele olhar. Percebemos como o personagem é intrigante, sádico, sombrio e com um lado negro (permitam a pequena metáfora) pra lá de perverso. Ligado aos militares, ele é acusado de ser um dos principais financiadores da OBAN. Angariava entre empresários, recursos para combater os guerrilheiros. Pior. O dinamarquês tinha prazer em testemunhar pessoalmente sessões de tortura. Inclusive, um dos aparelhos foi batizado com seu nome: a Pianola Boilesen, uma máquina de choques acionado por um teclado. E, quando necessário, fazia uso até dos caminhões da Ultragás para auxiliar nas caçadas dos guerrilheiros.

O empresário teve um final medonho (foi fuzilado por guerrilheiros do MRT e ALN) e terminou sendo representante de uma época que não parece ter sido real. Ao menos até agora, para os que não viveram conscientemente os anos de chumbo como eu. Uma época que parece distante, ou já superada. Não se trata disso. Não mesmo. Claro que seus amigos ou quem estava no poder, afirma que Boilesen era um bom homem e nada tinha a ver com aquilo. Porém, o comprometimento dele fica evidente em diversas situações narradas em detalhes. São muitos depoimentos com impacto tremendo. Ex-guerrilheiros, historiadores do período, políticos como Fernando Henrique Cardoso e religiosos como Dom Paulo Evaristo Arns, policiais e até de um dos filhos do empresário. Até na escola onde Boilesen estudou durante a infância na Dinamarca, o diretor esteve. E lá descobriu uma história curiosa e reveladora. Durante um castigo para colegas, Boilesen notadamente foi visto pelos professores divertindo-se além da conta com a punição. Não é prá menos que ele gostou do Brasil. Afinal encontrou um lugar onde pode impunemente exercitou seu prazer sombrio. E por incrível que pareça, o cara tem uma rua em SP com o seu nome. Nisso se dá o ponto de partida do filme. Quem teria sido aquele empresário?

É um filme esclarecedor sobre um período muito desconhecido ainda por nós e que deixa você pensando: Quantas histórias ainda estão por ai sobre a ditadura? Quanta gente pode estar por vivendo livre, leve e solto mesmo tendo cometido as mais diversas agressões e pior, assassinatos sem dó nem piedade? Essa é uma das grandes contribuições do documentário. Investigar, divulgar e deixar o espectador refletir sobre o que está vendo e ouvindo. Apresentando um tema chocante, explosivo e assustador, Cidadão Boilesen tem estrutura consistente, reveladora, e uma eficiência construída para você ver e sentir, sem fazer uso de técnicas convencionais. Costurado com trilha sonora original e uma rica programação visual. Confira, vale mesmo á pena.

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é diretor de cena e roteirista. Graduado em Publicidade e Propaganda com especialização em Cinema (Unisinos /RS). Dirige para o mercado gaúcho há 20 anos. Produz publicidade, reportagem, documentário e ficção. No cinema é um realizador atuante. Dirigiu e roteirizou os documentários Papão de 54 e Mais uma Canção. E também dois curtas-metragens: Gildíssima e Rito Sumário. Seus filmes foram exibidos em vários festivais de cinema e na televisão. Foi diretor de cena nas produtora Estação Elétrica e Cubo Filmes. Atualmente é sócio-diretor na Prosa Filmes.

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