Crítica

As marcas deixadas pelo período da Ditadura Militar, comandada pelo General Pinochet, são tema recorrente na produção cinematográfica chilena, especialmente no gênero documental. Chicago Boys, trabalho da dupla Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano, é outro a abordar a mesma temática, mas se diferencia ao focar em um elemento específico de extrema importância dentro deste contexto histórico, porém pouco explorado: o plano econômico neoliberalista que serviu de sustentação para o regime ditatorial. Mais especificamente, o documentário trata da história de um grupo de jovens que teve papel fundamental neste episódio determinante para o rumo das vidas de milhões de chilenos.

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Na década de 1950, alguns estudantes de economia da Universidade Católica de Santiago, apadrinhados pelo norte-americano Arnold Harberger, foram convidados a realizar um intercâmbio na renomada Universidade de Chicago, e por este motivo ficaram conhecidos como os “Chicago Boys”. Nesta temporada na instituição, grande parte do grupo foi influenciada pelas teorias ultraliberais do guru da economia Milton Friedman, com quem tiveram algumas aulas, fato que seria crucial para sua formação e para o futuro do Chile. É a partir do encerramento da exposição destas informações básicas – que constituem o primeiro dos três capítulos, mais o epílogo, em que se divide o documentário – que os diretores começam a revelar sua engenhosa estrutura narrativa.

A proposta dos cineastas se ancora na subversão de expectativas e de tom narrativo. A princípio somos apresentados às histórias pessoais dos então estudantes, que relatam suas experiências vivendo em um país estrangeiro de modo afetuoso e divertido. Esta relação de amizade e companheirismo ganha vida através de fotografias e filmes caseiros feitos pelos próprios, mostrando um ambiente alegre e festivo, onde a política não era assunto dominante. Citam-se as tendências de alguns integrantes, mas de forma apenas superficial, já que fatos como almoços no McDonalds ou o relacionamento de Arnold Harberger com uma jovem chilena, com quem se casaria, ganham muito mais espaço.

É quando os Chicago Boys retornam ao Chile, para lecionar na Universidade Católica, que estes realmente passam a se envolver na situação política local, momento também da virada dramática do filme. Inicialmente os jovens resolvem criar um plano econômico para oferecê-lo ao democrata-cristão Eduardo Frei, candidato à presidência derrotado pelo socialista Salvador Allende. Os boicotes, a pressão da imprensa e o apoio da CIA geram a turbulência no governo Allende, e é neste cenário que parte dos Chicago Boys é procurada por pessoas ligadas às Forças Armadas para refazer a proposta oferecida anteriormente e que acabaria sendo utilizada por Pinochet após o golpe militar que tirou Allende do poder.

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O choque de realidade ocorre quando é revelado ao espectador que muitos dos Chicago Boys, que não se posicionavam de modo efetivo, acabariam tendo papéis de destaque no governo Pinochet. Rolf Lüders e Sergio de Castro foram ministros da fazenda, Ernesto Fontaine foi colaborador do regime e Carlos Massad, presidente do Banco Central. Obviamente a surpresa é menor para os previamente familiarizados com tais nomes, mas o impacto desta constatação é inegável. O tom grave permeia todo segundo capítulo, dedicado a esmiuçar a política econômica ultraliberal, a teoria do livre mercado e o conteúdo do “Tijolo”, apelido dado ao extenso documento que continha o plano implementado pela ditadura.

Já no terceiro ato, os diretores adotam uma postura mais contestadora, indagando os entrevistados sobre as atrocidades cometidas pela ditadura: a repressão, os desaparecimentos, as mortes. A resposta é unânime, a de que não sabiam e não estavam envolvidos, pois tratavam apenas de balanços, crescimento da economia, etc. Ainda assim, sob o peso destas questões, surgem algumas reações distintas. Da isenção a um leve sentimento de culpa, e até mesmo a total indiferença, como a de Fontaine, que afirma literalmente “estar cagando para as motivações dos militares”, já que o país e ele ganharam com isso. Há ainda a voz contrária dentro do grupo, Ricardo Ffrench-Davis, que nunca compartilhou das ideias liberais e repreende ainda hoje suas consequências sociais, reafirmando que a criação deste modelo no Chile só foi possível devido a um governo totalitário, sem oposição.

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Vale a pena obter a liberdade econômica em detrimento da liberdade individual? Não há espaço para convivência de ambas? São questões levantadas por Ffrench-Davis e pelos cineastas, que reservam o epílogo para mostrar a insatisfação de grande parte da população atual, que vê um país de desigualdades bem diferente da imagem usada como exemplo de sucesso neoliberal. O registro das recentes manifestações ocorridas no país é poderoso e, de certa maneira, parece representar o pensamento compartilhado pela dupla de diretores. Apesar disso, Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano não se utilizam da manipulação e apresentam este pensamento de forma honesta, já que dedicam praticamente todo o longa a ouvir a opinião contrária. Não há a intervenção de narração em off, metáforas ou outras ferramentas. São os próprios depoimentos dos Chicago Boys que ilustram os dois lados da moeda. Com isso os cineastas propõem o debate sem limitá-lo, deixando-o aberto como as feridas daqueles que sofreram com os horrores da opressão.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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