Crítica

Anna Muylaert é uma diretora para ser observada. Após despontar com seu quase surreal Durval Discos (2002), ainda fez sucesso com É Proibido Fumar (2009), especialmente pelas presenças de Glória Pires e Paulo Miklos nos papéis principais. Agora, a diretora volta aos cinemas com uma produção que mantém o flerte entre comédia e suspense, uma de suas marcas registradas, mas carrega demais no primeiro: Chamada a Cobrar.

Clarinha (uma inspiradíssima e tresloucada Bete Dorgam) é a típica senhora da classe média paulistana: filhas criadas, condição estável, uma bela casa. A estabilidade é abalada quando ela recebe uma ligação a cobrar vinda de um rapaz que diz ter sequestrado uma de suas filhas. Muylaert, que também escreveu o roteiro, teve a ideia a partir das frequentes notícias sobre este tradicional golpe. O que se segue é uma montagem paralela entre Clarinha, impelida a dirigir até o Rio de Janeiro por seu interlocutor, e suas filhas, que se debatem em uma relação confusa enquanto tentam rastrear o paradeiro da mãe e da irmã sumida.

Originalmente, Chamada a Cobrar era um telefilme. Isso talvez explique a decupagem por vezes televisiva demais para o cinema, especialmente em se tratando de uma diretora hábil na linguagem para esse meio. O que fica difícil entender, porém, é o motivo pelo qual ele jamais se assume nem como suspense, nem como comédia. Essa ambiguidade até poderia ser usada para fortalecer o filme, colocando-o num limiar interessante tanto do ponto de vista estético como do narrativo. Mas isso não ocorre por dois motivos.

O primeiro deles é o elenco. Embora capitaneado pela excelente atuação da protagonista, o mesmo não pode ser dito, por exemplo, sobre Maria Manoela ou Cida Almeida, que interpretam as duas filhas em pânico pelo sumiço da mãe e da terceira irmã. Por algum motivo, elas sempre parecem estar calmas demais para uma situação assaz grave. Ou histéricas demais em contextos muito corriqueiros. Uma conjunção entre direção e atores que resulta numa confusão distrativa para o público. Confusão, aliás, que só aumenta com a participação (aparentemente sem propósito) do quadrinista Lourenço Mutarelli, autor de obras adaptadas para o cinema como O Cheiro do Ralo (2006) ou Natimorto (2009), no qual Mutarelli inclusive já havia atuado (embora de forma desastrada). A diferença é que, neste caso, seu papel caía bem, já que o filme como um todo era pouco naturalista. Mas aqui, na pele de um delegado de polícia, a impressão é de que ele sabe menos do que as filhas de Clarinha. Uma esquisitice nada bem vinda.

O segundo motivo é a ideia (louvável) de situar o filme num contexto sócio-político, fazendo do diálogo telefônico um acerto de contas entre classes sociais que "se estranham" ao longo da história do Brasil. A estratégia é inclusive o segredo do sucesso de grandes obras, como o recente O Som ao Redor (2012). Mas se lá a coisa funcionava exatamente por seu realismo cru, que tornava cada personagem um potencial conhecido ou vizinho, aqui ele se distancia cada vez mais da realidade por artifícios de comédia ou elementos surreais, tão caros a Muylaert e que, se não fosse este o contexto, funcionariam bem. O fato é que é difícil pensar em disputa de classes e na violência como instrumento político do Brasil quando a tela está repleta de pelúcia colorida e armas de brinquedo. Assim como uma piada sobre um tênis parece deslocada num contexto em que há mais em jogo do que o material.

Essa "esquizofrenia narrativa", por assim dizer, parece ter sido inclusive levada em conta pelos montadores do trailer, que habilmente fazem Chamada a Cobrar parecer um suspense eletrizante. Essa premissa pode ser uma decepção para o espectador, que vai encontrar uma comédia com tons televisivos e, em alguns momentos, um quê de thriller, vá lá.

Ainda que se debatendo entre dois gêneros sem encontrar uma identidade, Chamada a Cobrar é uma viagem que vale a pena ser feita. Seja pelas eventuais risadas que proporciona, seja pela reflexão provocada – ainda que de forma rudimentar, perto de seus pares nacionais – é mais um exercício de uma diretora que se consolida, cada vez mais, como uma das promessas de sua geração, encontrando (ainda que já o tenha feito em forma mais plena) a famigerada terceira via entre o absoluto comercial e o esoterismo artístico.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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