Crítica

Num bairro de pescadores em frente ao porto de Havana, moram Nelsa e Vladimir, mãe e filho. Ela, já em idade avançada, tem suas funções motoras prejudicadas. Ele, portador de Síndrome de Down, tampouco é capaz de viver sozinho. A diretora polonesa Aleksandra Maciuszek se insere no cotidiano de ambos, acompanhando episódios dos mais corriqueiros, pois desprovidos de sentido ou de importância aparentes, aos excepcionalmente dramáticos, estes, ainda assim, assimilados sem espetáculo pela câmera, como partes orgânicas de um viver sofrido. Os dois moram numa casa muito pobre, praticamente um cômodo onde se amontoam a cama dividida, o fogão e os pertences empilhados por falta de estrutura e de espaço. Não bastasse tudo isso, Vladimir tem problemas com a bebida, por vezes vagando sem eira nem beira pelas ruas do lugar, desprovido de qualquer objetivo.

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Casa Blanca é mais do que uma simples contemplação, em virtude do nível de intimidade alcançado no processo. Isso só é possível por conta da habilidade de Aleksandra Maciuszek, ela que se insere de maneira não intrusiva e quase familiar nas situações. A diretora lança um olhar afetuoso, mas não condescendente, às condutas questionáveis do filho, ao comportamento dos vizinhos e às atitudes tomadas por Nelsa. A invisibilidade possibilita a Casa Grande alcançar uma espontaneidade impressionante, seu principal pilar no que tange à linguagem. É como se não houvesse uma equipe a registrar os acontecimentos, tamanha a naturalidade vista, não somente no âmbito doméstico, mas também no externo, na convivência dos protagonistas com o entorno empobrecido. Outro trunfo significativo é a inteligência do roteiro no encadeamento das emoções implicadas nas relações.

A diretora Aleksandra Maciuszek evita interferir, portando-se mais como uma observadora privilegiada, cuja permissão para adentrar naqueles meandros singulares só é possível conseguir por meio da confiança. São particularmente emocionantes os momentos em que Vladimir se aquieta no colo de Nelsa, ganhando carinhos e afagos. Casa Blanca é um filme de afetos, isso evidenciado em diversas esferas relativas a protagonistas e a coadjuvantes ocasionais. Há várias cenas de pescadores tirando sarro carinhosamente de Vladimir, de vizinhos acudindo essa gente em claro estado de vulnerabilidade, lances responsáveis por denotar a ternura que permeia as afinidades. Na medida em que a morte se aproxima, não mais sorrateiramente, mas dando as caras enquanto possibilidade iminente, Vladimir muda, deixando atrofiar sua revolta, anteriormente bastante exposta, em prol do carinho que Nelsa necessita, porque agora dependente dele como nunca.

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A partir de um acidente apenas mencionado, a presença da mãe rareia, artifício que provoca suspense, sobretudo a respeito da condição de saúde dessa mulher de poucas palavras, possuidora de um olhar, embora cansado, resistente. A passagem do tempo em Casa Blanca é deflagrada essencialmente pelos letreiros informativos dos meses vigentes, muito porque o esqueleto narrativo não nos permite perceber de outra forma esse transcorrer. Depõem contra o filme certas reiterações, como a recorrente irascibilidade de Vladimir, e a lentidão da trama, atributo geralmente expressivo e coerente com a proposta, mas esporadicamente prejudicial ao ritmo. O que salta aos olhos, paradoxalmente, é o procedimento de imperceptibilidade da técnica, tanto aos personagens captados quanto aos espectadores que testemunham fragmentos visivelmente ordinários, mas que, quando justapostos, formam uma imagem complexa e bela do amor incondicional que trata de unir inequivocamente Vladimir e Nelsa, um quadro emoldurado pelo cenário desolador.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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