Crítica

No livro X de sua República, Platão “expulsa” os poetas e a poesia de sua “cidade perfeita”. Pensando em como criar a unidade política ideal, o filósofo chegara a conclusão que os arroubos dionisíacos e a “loucura” eventualmente embutidos na poesia desequilibrariam a pólis, comprometendo seu funcionamento. Em seu novo filme, Camille Claudel 1915, Bruno Dumont parece deixar implícito que havia algo de platônico no mundo da protagonista.

O filme mostra Camille já internada em um hospício em Montdevergues, na França, em 1915. E, como sinopse, bastaria esta linha. Acompanharemos a angústia, o sentimento, o desespero e até a eventual alegria da escultora, atormentada pelo passado e esperançosa por um futuro em que seu irmão, Paul Claudel, virá visitá-la.

É bom destacar que este longa é bem diferente daquele dirigido por Bruno Nuytten em 1988, e que consagrou Isabelle Adjani. Pode-se quase dizer que este filme começa quando aquele termina. E se lá a história tinha um tom biográfico, de trama, aqui, como bem cabe esperar de Dumont, trata-se de uma dramática, quase assustadora, experiência contemplativa.

Os planos-sequência super longos do diretor marcam presença, assim como as belas e inusitadas paisagens nas quais ele gosta de filmar. A fotografia cuidadosa de Guillaume Deffontaines faz lembrar o barroco holandês (principalmente Vermeer e Rembrandt) num discreto jogo de luz e sombra que dá ao cotidiano (seja uma mesa de almoço, seja um passeio no campo) ares de solenidade. Tudo isso é coroado pela escolha de Dumont por compor o elenco de coadjuvantes com pessoas que realmente possuem algum tipo de patologia clínica mental. Uma atitude ousada, que beira o antiético – e que se justifica nos créditos finais, os quais citam o nome de diversas instituições psiquiátricas e científicas – mas também ajuda a incomodar o espectador e colocá-lo no ponto de vista da protagonista.

Mas é Juliette Binoche quem brilha e se supera no papel-título, construindo com absurda sutileza uma personagem que, virtualmente, qualquer ator levaria ao exagero emocional. Fragilizada pela ausência de maquiagem e a debilidade física da personagem, a atriz não tem medo de se sujeitar a planos super fechados enquanto faz monólogos de cinco, sete minutos. Como bom diretor, Dumont sai da frente e deixa sua protagonista tomar conta do set, da tela, em proporções que lembram Maria Falconetti em sua brilhante Joana D'Arc (em A Paixão de Joana D’Arc, 1928), ao mesmo tempo em que (numa comparação injusta) fazem a oscarizada Fantine, de Anne Hathaway (por Os Miseráveis, 2012), parecer, ela sim, uma louca histérica.

E tem mais: Binoche se sujeita a dividir o set com loucos reais. Como Claudel, se permitiu ser uma artista entre loucos, mas diferente dela, deles dependia para a plenitude de sua arte. Um belo desafio, superado com maestria.

Seu contraponto dramático é o ator de teatro Jean-Luc Vincent, na pele de Paul. Deslumbrado por Rimbaud e por um misticismo cristão que beira o fanatismo (o roteiro do filme é adaptado de correspondências reais entre Paul e sua irmã), a reação do irmão à condição de sua par deixa ainda mais dúvidas a um já perturbado espectador. Num discurso quase inflamado, olhando por uma janela, Paul expõe sua forma de pensar à Camille. Um pensamento platônico o bastante para considerar que a Terra, como a conhecemos, é apenas um “reflexo” imperfeito do céu, este sim divino e ideal.

Sendo baseado em fatos reais, não há muito de “aberto” no final, embora fiquem abertas as feridas deixadas pela História. É reticente o olhar da protagonista em sua última aparição, como é duvidosa a decisão de interná-la. Embora apresente sinais claros de paranoia, por exemplo, fica difícil igualar Camille ao seus companheiros de claustro, fazendo suspeitar também da sanidade de quem lá a manteve. Porém, num mundo platônico, não é de se espantar que o lugar do poeta tenda a ser, afinal, bem longe da República.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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