Crítica

As marcas do conflito entre Israel e Palestina se mostram intensamente vivas na obra do cineasta Raed Andoni. A temática, que já dominara seu documentário de estreia, Fix ME (2009), volta a ser explorada neste novo trabalho, Caçando Fantasmas, em que o diretor palestino opta por uma abordagem pouco convencional para realizar um verdadeiro exercício cinematográfico/terapêutico. Tendo sido prisioneiro do centro de detenção israelense de al-Moskobiya quando jovem, Andoni busca reconstituir a dolorosa experiência do encarceramento, em particular a dos longos e excruciantes interrogatórios. Para isso, publica um anúncio num jornal de Ramalá à procura de outros ex-prisioneiros que tenham passado pelo mesmo pesadelo e queiram trabalhar num filme, exercendo as funções de atores e de membros da equipe de construção dos cenários.

A câmera do cineasta observa todo o processo de preparação e execução do projeto, como um making of, partindo da seleção dos candidatos que responderam ao anúncio. Assim, Andoni apresenta as figuras que o acompanharão nessa jornada autoinvestigativa, um grupo de homens das mais diversas origens e formações, como um carpinteiro habituado às montagens de sets de filmagem, um ferreiro e um designer de interiores. Todos com a exigida vivência em al-Moskobiya e outras prisões em Israel, exceção feita ao artista plástico, interessado no viés sociológico do experimento como forma de inspiração para seu trabalho. Entre os escolhidos há também um ator profissional, Ramzi Maqdisi, incumbido de interpretar o papel principal, baseado no ex-prisioneiro Mohammed Khattab, que exerce a função de consultor, descrevendo detalhes de sua história, dos métodos de tortura física e psicológica utilizados pelos israelenses etc.

Ao colocar todos os homens na criação dos cenários da prisão – feita dentro de um enorme galpão – Andoni permite que as lembranças individuais – os detalhes de suas celas, da iluminação, dos corredores – acrescentem nuances particulares à espécie de consciente coletivo palestino em relação ao encarceramento, misturando-se à memória do relato central de Khattab, que guia a narrativa. Dentro dessa proposta, o registro se aproxima mais do de uma atmosfera teatral que propriamente de uma cinematográfica, intercalando as sequências de ensaios, momentos triviais de convivência entre os atores e depoimentos pessoais - que tomam a maior parte do tempo de projeção – aos fragmentos mais curtos da encenação ficcional em si. O objetivo de Andoni com essa concepção é claro: dar foco total à utilização da reconstrução dos fatos como meio de exorcizar os demônios do passado. Uma terapia em grupo dramatizada, da qual o próprio cineasta também toma parte.

No decorrer da experiência, os embates emocionais surgem naturalmente, quando os protagonistas se deixam levar pelo calor da materialização de seus traumas. Khattab, particularmente, protagoniza vários desses momentos, como na reconstituição de um interrogatório em que assume a posição do interrogador e se excede na violência com a qual bate a cabeça de Maqdisi contra a parede. E, ao impor a troca constante de papéis, entre prisioneiros e militares, Andoni prolonga o mesmo sentimento vivenciado por Khattab aos outros participantes. Aos poucos, porém, a proposta parece se desgastar, não atingindo plenamente o impacto sugerido inicialmente. Andoni consegue alcançar seu objetivo expurgatório, extraindo ainda grande força dos depoimentos, em alguns casos, como o do pai de sete filhos que afirma que o exercício o ajudou se livrar de um peso carregado por anos.

Outros, porém, demonstram ter suas angústias, antes aparentemente controladas, reacendidas pelo processo, levando-os a questionar a validade do mesmo. Um sentimento estendido ao espectador que, inevitavelmente, se indaga sobre o quanto reviver esses acontecimentos traumáticos não termina por exercer um efeito prejudicial. A distinção entre a natureza fictícia ou real das imagens é outro ponto que se torna menos claro no trabalho de Andoni. Enquanto é possível notar uma espontaneidade genuína nas sequências que retratam a interação entre os ex-prisioneiros – contando piadas ou dançando para celebrar o casamento de um deles – em outras passagens, como aquela em que o diretor assistente confronta Andoni, afirmando que este trata a todos como peões em seu tabuleiro de xadrez, soam pouco naturais.

Ainda que apresente essas visíveis arestas narrativas e que, de modo geral, não se aprofunde em outros aspectos relevantes – político, histórico – sobre o conflito Israel/Palestina, Caçando Fantasmas nunca deixa de manter o interesse devido a sua abordagem particular, que ainda faz bom uso das inserções em animação com um personagem que representa a versão do jovem Andoni aprisionado, o fantasma de seu passado. Em meio a sua terapia filmada, o diretor também valoriza a arte como forma externar as dores e auxiliar em sua cura. Algo que fica evidente não só na figura do artista plástico e suas criações, mas na de outros personagens que recorrem à escrita e à poesia como forma de expressão, e que culmina no desfecho em que o set de filmagem se transforma numa instalação artística visitada pelas famílias dos participantes. Um momento no qual a realidade volta a inundar o faz de conta, quando a filha de Khattab revela ter saído recentemente da prisão, mostrando que, enquanto o cineasta abre a porta do galpão para libertar seu próprio fantasma, milhares de palestinos continuam a ser assombrados por essa realidade.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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