Crítica

No final dos anos 1990 – em 1997, mais precisamente – o fotógrafo, publicitário e produtor cultural Sérgio Guerra se mudou para Angola atendendo a um convite do governo daquele país. A ideia era desenvolver um programa de comunicação local, que integrasse a população. Com essa missão pela frente, empreendeu inúmeras viagens pelo interior africano, oportunidade em que conheceu melhor aquelas regiões, suas diferenças e culturas. Daí nasceram livros fotográficos que retratam as comunidades e as belezas locais, produto esse que foi exposto diversas vezes no Brasil, África e Europa. Esse material deu origem também a um registro das tradições e costumes hereros, moradores do sul angolano. Este esforço específico, que contava com seu expertise no assunto, gerou mais uma infinidade de conteúdos que foram distribuídos ao público em variados formatos: livro fotográfico, exposições e, agora, também como um documentário, que marca a estreia deste artista multimídia como cineasta. Mas se Hereros Angola propõe um amplo painel desse universo tão particular, por outro lado lhe falta algo que o justifique enquanto cinema.

A proposta é ousada: não somente preservar através de um conteúdo imagético o cotidiano dessa comunidade e seus hábitos mais caros e importantes, como também fornecer material para uma releitura destes afazeres, buscando através do distanciamento outros sentidos para tais ações e diretrizes. Se, no entanto, Hereros Angola é feliz na primeira etapa do projeto, peca por carecer de espaços para essa necessária reflexão. Tudo é exposto de modo didático, com uma trilha sonora insistente e uma montagem convencional, que não brinca – muito menos se arrisca – com todo o acervo disponível. Conta-se que foram mais de 400 horas armazenadas, que deveriam ser formatadas em pouco mais de 90 minutos. A necessidade de ser o mais completo possível resultou em um filme engessado, abarrotado e tão preocupado com os detalhes que esquece o olhar sobre o conjunto.

Para se ter uma ideia, há raras tomadas gerais, que ofereçam as condições exigidas pelo espectador para que esse possa, de fato, compreender a abrangência do povo herero. Por outro lado, há uma abundância de relatos e entrevistas em primeira pessoa, no mais esquemático sistema de ‘cabeças falantes’. Cenas fortes, como o abate do gado, a circuncisão das crianças e a extração dos dentes da frente (costume de gerações), são mostradas de forma muito explícita, sem a devida preocupação ou refinamento das imagens sobre como serão apreendidas pela audiência. Perde-se tempo com curiosidades típicas, como as questões conjugais a respeito da fidelidade marital ou a importância dos bois como herança hierárquica, mas o desenvolvimento destas consequências, as origens de tais tradições e como o futuro para eles vem sendo desenhado é explorado com superficialidade, como se o mais urgente fosse o choque cultural, e não o entendimento da raça.

Ao se apresentar como uma grande reportagem, inclusive pela aparência televisiva, Hereros Angola fica em desvantagem inegável, pois muito já se fez similar – e de modo superior – em canais como National Geographic. O filme peca também por não introduzir nada de novo – seja no formato, ou mesmo no conteúdo – além daquilo que o próprio realizador havia investigado em seus registros anteriores. Assim, redundante e raso, este é um trabalho que pode, eventualmente, despertar a atenção momentânea, mas nada que compreenda um investimento de tempo ou dinheiro de uma sessão na íntegra.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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