Crítica

A chuva limpa, molha, dá vida. Mas também destrói, invade, não tem limites quando em excesso. Dependendo de como ela se apresenta, determina-se um comportamento específico após a sua passagem. Assim também estão personagens do longa baiano Depois da Chuva, trabalho de estreia em longa-metragem dos diretores Marília Hughes e Claudio Marques. A ação passa-se em 1984, período em que o país estava marcado pelo processo de Diretas Já!, início da democratização e fim da ditadura militar. Estamos em uma Salvador contemporânea, urbana, longe dos romances de Jorge Amado, mas ainda assim muito viva e pulsante. E após tanto tempo sob o jugo das forças armadas, saberão os brasileiros como se comportar diante essa nova condição? A resposta, obviamente, não será descoberta com facilidade.

Caio (um interessante Pedro Maia) é um jovem desinteressado. É um bom aluno, mas não se esforça para isso, nem tem grandes amigos. O pai saiu de casa há pouco, e a mãe parece alienada, sem saber como lidar com a solidão. O melhor conselho que ela tem para o rapaz é: “tu não me traz problemas, que eu não te causarei incômodo”. Vagando aleatoriamente pelo dia a dia, encontra algum alento num grupo de jovens mais velhos e igualmente insatisfeitos com o rumo das coisas. Bebem e fumam, compõem canções de protesto e se reúnem para conduzir uma rádio pirata que promete a revolução.

Na escola, microcosmo adolescente de uma sociedade em ebulição, o processo democrático se faz presente através da insistência de alguns alunos em convencer a diretoria da necessidade de se implantar na instituição um grêmio estudantil e, assim, dar voz também aos estudantes. O diretor concorda, porém com ressalvas, e se alguns entendem que concessões fazem parte do processo, outros se rebelam, na base do ou tudo, ou nada. Caio, no entanto, não está nem aí. “Tá insatisfeito? Vota nulo”, diz ele. Mas dentro deste cenário em que nada parece fazer sentido, talvez a voz mais necessária neste momento seja justamente aquela que identifica as causas do protesto. Pode não saber o que fazer para mudar, mas ao menos tem ciência da necessidade de transformação.

Com um roteiro muito bem amarrado e uma competência técnica bastante pertinente, Depois da Chuva é hábil em escapar dos clichês juvenis tão comuns ao gênero, compondo uma obra adulta que consegue se comunicar com eficiência com os mais diversos tipos de público. Os realizadores falam de temas que lhe são caros – algumas passagens são nitidamente autobiográficas – e sabem como conduzir esse discurso sem soar didático ou repetitivo. Algumas soluções podem soar um tanto drásticas, enquanto que outros elementos narrativos são simplesmente descartados, sem maiores explicações. Mas acima de tudo isso percebe-se um carinho muito grande dos cineastas pelos personagens, o que favorece a identificação com o público. O vazio da adolescência, já tão explorado pelo cinema, aqui ganha novo fôlego ao se refletir em todo um país, ainda jovem, mas que anseia pelos primeiros passos. Pode acabar batendo a cara no muro – como acabou fazendo nos anos seguintes – mas ao menos foi por conta própria. Ou ao menos é o que fomos levados à acreditar.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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