Crítica

O Amanda Awards – prêmio máximo do cinema norueguês – de 2014 escolheu como Melhor Filme do ano o drama Mil Vezes Boa Noite (2014), já exibido no Brasil e premiado ainda como Melhor Fotografia e Trilha Sonora. Essa decisão, longe de apontar para um filme equivocado (talvez desprovido de algumas qualidades essenciais, mas nunca problemático como um todo), talvez tenha sido motivada pelo caráter internacional da produção, falada em inglês e estrelada por dois astros de destaque hollywoodiano (Juliette Binoche e Nikolaj Coster-Waldau). No entanto, o longa mais premiado da cerimônia foi Blind, vencedor em quatro categorias: Atriz (Ellen Dorrit Petersen, superando Binoche), Direção, Desenho de Som e Montagem. Ainda concorria a Filme, Roteiro e Ator Coadjuvante (Marius Kolbenstvedt), e se não os levou, não foi por falta de mérito. Ao menos entre estes dois concorrentes, a obra do diretor Eskil Vogt é, de longe, a mais interessante.

Quais são os seus maiores medos? A maioria das pessoas provavelmente afirmasse temer a morte, o estranho, a violência, a dor. Porém, num segundo momento, e após uma devida reflexão, é muito provável que a resposta mais apropriada seja, simplesmente, a solidão. O que fazer quando você simplesmente deixa de existir? E se esse abandono for muito mais psicológico do que físico? A ausência material pode se refletir nos mais diferentes aspectos, desde a falta de tato até a perda de relevância. Independente do âmbito em que essa angústia se instaure, o comum é aprofundar-se cada vez mais em um misto de depressão e paranoia rumo ao fundo do poço do qual sair será quase impossível. Principalmente por desconhecer-se capaz para tanto.

Ingrid (Petersen) perdeu, já adulta, a visão. Mulher linda, de beleza nórdica, flutua como uma ninfa pelos cômodos do seu apartamento, único ambiente em que ainda se sente segura. Teme sair de casa – na verdade, um bloqueio a impede – e todo apoio de fora vem do marido, Morten (Henrik Rafaelsen), que segue resiliente ao seu lado. Sua única ocupação é, ocasionalmente, um copo de vinho, e mais constante, o computador, ao qual emprega em ferramentas de texto específicas para sua condição. Ali extravasa sua criatividade, desenvolvendo histórias e enredos ficcionais. Mas também expõe no papel virtual suas preocupações, inseguranças e temores. E se o marido a estiver traindo? E se a falta de sexo dela se refletisse num excesso para os outros? Como lidar com uma (eventual) criança? O desconhecido é mesmo tão perigoso quanto aquele que existe apenas na sua imaginação?

O mundo de Ingrid é também o do espectador de Blind. E essa fusão entre realidade e imaginação se dá com extrema perfeição graças à condução sensível e segura de Eskil Vogt, que sabe muito bem o que dizer e não tem pressa em chegar ao seu destino. Roteirista reconhecido por filmes como Oslo, 31 de Agosto (2011), ele estreou na direção de longas justamente com esse trabalho que se apoia em um enredo engenhoso, uma edição estudada e nos ombros competentes de sua protagonista, atriz que enfrenta sem pudores nem melancolia uma personagem que poderia facilmente cair no estereótipo, mas que se mantém acima da mórbida curiosidade do início ao fim. E entre uma eventual amante que pode (ou não) também estar ficando cega e outro ser solitário cujo único refúgio parece ser a pornografia desenfreada, sobreviverão apenas os lúcidos o suficiente para se levantarem na escuridão.

Premiado como Melhor Roteiro no Festival de Sundance, nos EUA, foi também exibido com sucesso no Festival de Berlim, de onde saiu com o troféu Label Europa Cinema, um selo de qualidade que serve como recomendação para ser exibido no mercado europeu. Afinal, esse é o maior reconhecimento que Blind merece: ser descoberto.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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