Crítica

No dia 14 de maio de 2011, em Nova York, o francês Dominique Strauss-Kahn foi acusado de agressão sexual por uma camareira do hotel onde estava hospedado, em Nova York. Acontece que ele não era um mero homem de negócios em uma viagem de trabalho corriqueira, e sim do presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e futuro candidato à Presidência da França pelo Partido Socialista – com boas chances de vitória, aliás. Os fatos que o levaram a esse incidente e as consequências da denúncia em sua vida pessoal e política compõem o enredo de Bem-Vindo a Nova York, contundente drama dirigido por Abel Ferrara e estrelado por um corajoso Gerard Depardieu como o protagonista.

Para evitar se prender a fatos muito específicos e que poderiam atrapalhar a relevância desta história na forma pela qual ela está sendo contada, Ferrara assume um tom quase documental em seu discurso, porém assumindo-se inevitavelmente enquanto ficção. O personagem principal se chama, portanto, Sr. Deveraux, e a trama vai se construindo as poucos, sem atropelamentos ou interrupções, reproduzindo naturalmente a ordem natural dos acontecimentos. Para tanto temos a cidade americana como uma nova Meca, centro de fama, fortuna e muito brilho, que atrai a todos e os consome sem piedade ou compaixão. Quem não tomar os cuidados necessários será levado por uma espiral de decadência, envolvendo drogas, sexo, exageros e luxúria quase irreversíveis. As referências se perdem, e um recomeço se torna um passo quase impossível para aqueles que adotarem esse comportamento vicioso.

Depardieu incorpora sem reservas essa personalidade deplorável e angustiante, mas que ainda assim consegue despertar uma simpatia no espectador: por mais condenável que sejam seus atos, nesta condição de se sentir o dono do mundo, é praticamente impossível não compreendê-los. O julgamento existe – e Ferrara sabe disso, tem consciência que o público está avaliando com suas próprias bases cada movimento dos personagens – mas ele não se torna o centro da discussão. O sentimento que fica, numa última análise, é o da pena e do pesar. Aquele que poderia ter tudo – e quem nunca se imaginou nessa posição? – acaba abrindo mão na mesma proporção por um erro primário, não pequeno, mas ainda assim ínfimo diante da grandeza de suas ambições.

A jornada do céu ao inferno percorrida por Deveraux é até certo ponto previsível, e seu final chega a ser frustrante – se o dinheiro pode tudo, como dessa vez seria diferente? Mas Bem-Vindo a Nova York nunca teria o mesmo alcance se não fosse defendido por dois atores no total domínio e entendimento dos seus papéis. Depardieu está, literalmente, um monstro, produzindo ao mesmo tempo repulsa e empatia por seu destino. Sua entrega, ainda mais para um astro do seu porte, é impressionante. Mas é impossível não se sentir hipnotizado pela performance corretíssima de Jacqueline Bisset – como a esposa traída que surge no meio do filme para tentar reduzir os danos na imagem do marido. Ela está em cena apenas na metade final do filme, e os embates entre os dois, verborrágicos e enérgicos, dotam esse projeto de uma importância não só social, mas também artística e cultural. Um ótimo exemplo de dois intérpretes defendendo com paixão suas histórias, por mais terríveis que elas sejam.

Bem-Vindo a Nova York não deve ser visto como um retrato fiel feito a partir de um episódio tão singular. Ainda assim, pode servir de parâmetro para um comentário sobre nossa sociedade, em que tudo é descartável, desde os desejos de hoje até mesmo as pessoas que queremos ser amanhã. Abel Ferrara entrega um filme forte e poderoso, que habita um universo muito específico, mas ainda assim facilmente reconhecível. E seu mérito maior é tratar cada um dos vértices desta ação com a maior imparcialidade possível, deixando para a audiência a tarefa de buscar suas próprias conclusões. Uma tarefa cada vez mais difícil, que exige um alto grau de confiança, mas que recompensa na mesma altura dos esforços envolvidos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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