Crítica

É preciso uma boa dose de paciência para enfrentar os pouco mais de noventa minutos de Austerlitz. O cineasta bielorusso Sergei Loznitsa propõe uma observação formalmente rígida de um dia de visitação turística num campo de concentração. Se antes o espaço significava dor e morte, agora ele serve a toda sorte de grupos que lá fazem passeios. A estrutura narrativa é constituída, basicamente, de planos fixos, com duração esticada até o limite do suportável, cujo movimento interno, ditado pelas pessoas que transitam em frente à câmera, nem sempre oferece significação. Assim, olhamos incessantemente paisagens onde nada de concreto acontece, a não ser o vai e vem de gente de muitas nacionalidades – algo que se percebe pelas camisetas e demais peças características de vestuário. Os cenários são repletos de lembranças macabras, portanto, nada convidativos à recreação.

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Óbvio que a preservação de locais como esse, nos quais a História foi escrita, deve acontecer. O que Loznitsa busca com Austerlitz é deflagrar uma deformidade, afinal de contas nem mesmo as palavras decoradas dos guias conseguem construir uma esfera informativa ou algo que a valha, sobrando aos ouvintes a mera curiosidade. A parcimônia com que os reais intentos do filme surgem está ali para instalar um desconforto genuíno, algo que realmente acontece. Todavia, essa sensação barra a ligação do espectador com as futuras demonstrações non sense de alguns visitantes. A imagem em preto e branco se dispõe a estabelecer uma ponte entre o passado doloroso daquele lugar e o presente, em que ele é explorado como um parque de diversões. Tudo aponta para essa visão mordaz da nossa sociedade atual, na qual parece perfeitamente aceitável tirar selfies diante de fornos crematórios ou câmaras de gás.

Um dos indícios dessa crítica ferina aos visitantes, que faz deles exemplos latentes de nossa coletividade cada vez mais exibicionista, é o fato de Loznitsa poucas vezes apontar suas lentes para os espaços emblemáticos, direcionando nosso olhar às reações dos turistas, estes mais dispostos a levar uma recordação para casa do que propriamente a refletir acerca do que possibilitou a barbárie ali outrora testemunhada. Embora a mensagem principal do longa-metragem se imponha definitivamente do meio para o final, proporcionando momentos em que há uma discrepância entre o cenário representativo e o que as pessoas fazem dele, o transcorrer truncado pela inércia toma dimensão de tal maneira opressora, que fica difícil não debandar da sessão tendo se passado míseros minutos. Austerlitz exige demasiada condescendência do espectador até, de fato, ganhar substância.

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Verdadeira prova de resistência, o filme de Sergei Loznitsa impacta por determinadas cenas, como quando uma mulher posa e sorri próxima a um instrumento nazista. No fim, uma família tenta diversas vezes o melhor ângulo para tirar uma foto idílica diante dos portões do campo de concentração. A saída risonha do grupo de estudantes também confere munição à mirada ácida de Loznitsa. Contudo, são poucos os instantes que dão relevância à intenção de mostrar esse dia ordinário de visitação como um sintoma. Na maior parte do tempo, a contemplação aparentemente despropositada se instaura, tornando bastante fatigante a experiência de assistir ao filme. Tal sensação só é amenizada pelas já citadas exceções, fragmentos com forte potencial dramático, mas em número insuficiente para justificar o caminho adotado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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