Crítica

Robert Altman foi um dos grandes autores do cinema americano. É um legítimo gênio da sétima arte, que mesmo em obras menores como Prét-À-Porter (1994) demonstrava um grau de inventividade muito acima da média. Mas em Assassinato em Gosford Park ele foi muito além, combinando o melhor do que sempre evidenciou em toda a sua carreira de uma só vez, em um trabalho ao mesmo tempo ácido, crítico, divertido, inteligente e perspicaz. Ainda que não tenha sido o seu filme derradeiro, pode – e deve – ser considerado como seu canto do cisne, o trabalho que ficará na memória de fãs e admiradores como sua última grande contribuição para o exercício cinematográfico enquanto arte.

Vários são os trunfos dessa produção. Altman e o ator Bob Balaban, também presente no elenco, são co-autores da ideia original que deu origem ao roteiro, que por sua vez só foi tomar sua forma final pelas mãos de Julian Fellowes, mais conhecido atualmente por ser o criador da série Downtow Abbey (2010) – produção que, por sinal, tira muito do seu conceito deste filme – aqui em sua estreia como roteirista. Essa junção de talentos foi extremamente feliz, pois trouxe à tona talentos dos mais diversos, que juntos apresentam uma carga altamente explosiva.

Qual é a premissa básica? Sob uma aparente trama de mistério – durante um final de semana, ricos ingleses da década de 1930 e seus criados encontram-se na residência de campo do casal McCordle para um evento de caça, em Gosford Park, quando um assassinato no meio da noite altera sutilmente vários planos paralelos que estavam em desenvolvimento – é curioso notar o quanto é dito em pequenos gestos, sutis detalhes e em rápidas sequências. Muito além do que uma corriqueira trama à lá Agatha Christie poderia nos oferecer, Assassinato em Gosford Park é como uma imensa colcha de retalhos, pois cada um de seus relevos esconde muito mais do que aparentemente imagina-se ser capaz.

Essa verdadeira fauna antropológica composta por duas classes sociais tão distintas é desempenhada com maestria por um elenco nunca aquém da perfeição. É impressionante observar a sintonia existente entre todos em cena, pois desde o serviçal iniciante até o mais esnobe dos convidados possui uma importância crucial para o desenvolvimento da história, de modo como há muito não se via. Dentre os destaques, um quarteto de grandes atrizes merece aplausos especiais. Do lado dos patrões, é satisfatório perceber o talento de Kristin Scott Thomas como atriz, principalmente após a febre de O Paciente Inglês (1996). Sua Lady Sylvia é a expressão perfeita do lado mais amargo e dissimulado da nobreza, em que tudo que importa são as aparências. O resumo do personagem se dá quando Ryan Phillippe entra em seu quarto, após o assassinato, para oferecer consolo e “qualquer outro tipo de ajuda” e ela, após um instante de hesitação, concede-se aos gracejos do jovem afirmando “pois é, a vida continua do mesmo jeito”. Já do outro lado da moeda temos uma Maggie Smith no auge de sua excelência, com toda a frivolidade, futilidade e decadência que só uma profissional do seu gabarito poderia se dar ao luxo de tornar realidade com tamanha naturalidade e competência. É notório o prazer da atriz em dar vida a esse personagem.

Descendo as escadas vê-se a realidade dos mordomos, criadas, pajens e demais auxiliares. A falta de individualismo aqui é tão grave que, num evento como o vivido no filme, eles não são nem tratados por seus nomes de batismo, sendo conhecidos inclusive entre si pela alcunha de seus patrões, “para evitar confusões”. Nessa história paralela, as mais gratas surpresas estão nas mãos de Emily Watson, mais uma vez comprovando sua versatilidade, mas infelizmente sem muitas cenas memoráveis, e de Helen Mirren, a verdadeira alma do filme. A vencedora do Oscar por A Rainha (2006) é silenciosa, dura, porém delicada, praticamente transparente. Se fosse necessário escolher um único personagem para simbolizar o que realmente é Assassinato em Gosford Park, obviamente apostaríamos em sua Mrs. Wilson. Ao término do filme, chega a ser surpreendente perceber como, durante o tempo todo, a história esteve em suas mãos, e mesmo assim nunca chegamos a desconfiar desse fato com firmeza. Ela é, como a própria chega a afirmar em cena, a “perfeita serviçal, mestre na arte da antecipação”. Muito antes de termos consciência ela protagoniza um irretocável show de atuação. 

Quanto aos demais aparatos técnicos, a competência apresentada conta com o padrão de qualidade usual desse tipo de produção. É importante notar que Assassinato em Gosford Park não é e nem deve ser confundido como mais um exemplar de cinema-pipoca, gostoso e descartável. Aqui tem-se uma múltipla aula, seja de história, teoria econômica, interpretações, literatura, política, entretenimento, arte. É possível depreender tantas teorias, aliadas a uma prática irrepreensível, que somente uma experiência poderia transmitir com eficiência. Este é um filme, em última instância, que precisa ser vivido e absorvido com intensidade, ardor e profundidade, para somente depois, com o tempo, se aprofundar lentamente em cada um dos seus significados. É notável perceber como algo tão pessoal possa ser também tão prazeroso!

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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