Crítica

As declarações que abrem Ascensor para o Cadafalso denotam paixão e anteveem perigo. A mulher diz ao homem que o ama, e vice-versa. Separados geograficamente, porém unidos pelo sentimento que os levará até mesmo a cometer um crime, eles planejam uma vida a dois, nem que para isso precisem sujar as mãos de sangue. Florence Carala (Jeanne Moreau) convence seu amante, Julien Tavernier (Maurice Ronet), a matar o marido industrial, não por acaso presidente da empresa onde ele possui um cargo de confiança. O diretor Louis Malle se vale de elementos do noir para estabelecer essa dinâmica inicial, e também como alicerce da narrativa quando ela se bifurca mais adiante, mostrando em paralelo as dificuldades do casal principal e as peripécias de dois jovens inconsequentes que demonstram pouco apreço por regras e são catapultados ao turbilhão alheio depois de roubarem um carro.

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Após a consumação do crime inicial, o assassino fica preso no elevador em virtude de uma série de eventos fortuitos que, de certa forma, trazem à baila a ironia do destino. A inevitabilidade da punição é construída com vagar, na condição de pilar dos desdobramentos. Enquanto Julien tenta escapar de todas as maneiras da clausura involuntária, Florence perambula pelas ruas de Paris, visitando cada lugar que ele frequenta regularmente, obviamente não logrando êxito na intenção de encontra-lo. Nesse momento, Ascensor para o Cadafalso se volta muito mais para o casal jovem, sobretudo à interação deles com os alemães que são convertidos em vítimas dessa casualidade que Malle faz questão de sublinhar como fator preponderante. Os personagens parecem estar sempre na hora e no local errados, seguindo por caminhos já traçados pela inclinação sombria de suas decisões.

O amor e a morte se entrecruzam constantemente em Ascensor para o Cadafalso. O desleixo também é evidenciado como sintoma de um descompasso, da turbulência ocasionada pelos atos desesperados, ora decorrentes da vontade de permanecer ao lado de quem se ama, ora por conta da imaturidade de não saber bem que lugar ocupar no mundo. Não é à toa que Julien esquece uma corda capital ao delito cometido, ou mesmo que o garoto deixe para trás um artefato igualmente comprometedor. Ambos os descuidos podem ser entendidos como formas inconscientes de autopunição, ação ocasionada pela força de uma moral totalmente calcada na ideia de crime e castigo. Segundo essa lógica, por mais que o indivíduo possua o livre-arbítrio para tomar decisões, ele é fortemente condicionado por uma série de regras e demais códigos calcificados de tal maneira em sua formação que deles não pode escapar. Malle investe nessa ideia de um encarceramento prévio, que paralisa as pessoas.

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Ascensor para o Cadafalso é um filme marcado pelo perambular aturdido dos personagens, por essa sensação intermitente de desolação que acomete a todos. Ao som de Miles Davis é montado um quebra-cabeça em que cada nova peça deixa ainda mais claro o abismo para o qual a maioria caminha. A engenhosidade do trabalho de Louis Malle está em criar e, acima de tudo, sustentar uma atmosfera de angústia dominante, que abate os protagonistas com a força dos imperativos. Jeanne Moreau é a que mais carrega no semblante esse martírio, demonstrando desamparo em meio ao transe que a faz mirar apenas a intenção de localizar o cúmplice amado no balcão de algum bar. Os equívocos se multiplicam durante a trama, reforçando por recorrência a fragilidade do controle que consideramos possuir cotidianamente, bem como da realidade, assim bem menos soberana e óbvia.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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