Crítica

Como resolver a tensão entre o que é filmado intencionalmente e o que escapa ao controle da manipulação ficcional, fruto da movimentação natural dos corpos no espaço de registro? As Quatros Voltas, longa-metragem de estreia do italiano Michelangelo Frammartino, parece resolver a questão sem muita cerimônia. Primeiro, ele não se permite embarcar nas sutis separações entre o documentário e a ficção. Antes, o que vemos é um envolvimento entre o altamente encenado e algo como o fluxo das coisas, não o paisagismo contagiante de cineastas fascinados com a vastidão dos cenários naturais, mas a possibilidade de enquadrar as coisas acontecendo no instante imediato de sua relação com o humano. Há pouca manipulação visível dentro daquilo que é possível não manipular, quase como um filme de resistência a intervenção do autor. As imagens da natureza se misturam com a presença humana, num casamento que só pode fazer sentido, aqui, se for consequência de uma exploração dos contatos entre as diferenças e as necessidades que cortam o mundo. O ciclo, isto é, do homem à árvore e desta aos minerais, é a síntese do material que Frammartino quer filmar pacientemente, beijando a terra de onde nos alimentamos, contando suas histórias como protagonistas que são na experiência da vida.

Só com imagens (os poucos diálogos que existem são inaudíveis, só nos chegam os murmúrios), vemos morrer um velho pastor habitante de um vilarejo montanhoso na região da Calábria, na Itália, que é protagonista apenas por alguns momentos (embora não deixe de existir simbolicamente). Após alguns dias em que acompanhamos sua rotina, do alimento às cabras e as idas diárias à Igreja vazia e empoeirada da região, somos surpreendidos com sua morte, logo quando uma pequena movimentação religiosa atravessava o vilarejo e, acidentalmente, suas cabras avançam as cercas derrubadas por uma caminhonete. As cabras tomam a aldeia e anunciam a morte do pastor. Mas sabemos, aqui, diante das imagens que se anunciam, que a morte é só o início da vida – não no sentido espiritualista das novelas.

Uma pequena cerimônia é feita e logo temos nossa próxima personagem: a cabra, que inclusive vemos nascer, aprender a se firmar e a morrer aos pés de uma árvore, que, não por acaso, será a próxima protagonista – para depois virar carvão. Todas as ações que a câmera capta são consequências de algum movimento delicado – um cachorro, um desvio na trilha ou mesmo a mudanças das estações. São essas coisas que aquecem e fazem o mundo girar. É inteiramente perceptível a habilidade de Frammartino ao filmar esse ciclo natural sem tentar justificá-lo teleologicamente. Mais que filmar pessoas falando e meramente insinuando egoisticamente suas experiências de vida, ele filma a vivência mesma, o sangue e a carne do mundo em plena transformação. Para os românticos, o inferno.

A história dos mundos e das coisas, sintetizada numa sequência (o nascimento da cabra e seu ciclo de existência) que é já parte da ontologia cinematográfica contemporânea, mas que não se reduz a si mesma. Tudo vive e transborda. Pulsa. Porque os protagonistas de As Quatro Voltas são todos aqueles que vivem e que morrem, aqueles que naturalmente negam a imortalidade. E que vivem mesmo na morte. Um filme que não é nada disso que você espera dele. Simples apenas nas aparências, complexo em sua verdade e perigoso em sua mentira. Mas ele é assim mesmo, um pouco certo demais, meio fechadinho e límpido, mas potente. O céu sempre nublado, a atmosfera cinzenta e embolorada da igreja e as atividades silenciosas amplificam a mitologia muito sensorial que o filme cria. Se a intervenção do diretor não aparece demais, a interação entre os corpos (que é qualquer coisa que realize algum movimento) que compõem os quadros faz religiosamente o contrário, mexem, reviram, estragam, arrumam, matam. A beleza, ora, pode ser também aquela medida que nos escapa o entendimento.

As imagens mais fortes do filme se apresentam sem hermetismo, sem a intenção de meramente causar um impacto maior que suas próprias forças. A câmera, quase sempre estática e observadora (sem em momento algum ser desleixada e filmar o céu e as montanhas na tentativa de poetizar as imagens, pois muitas coisas acontecem na quietude de cada plano), revela as trivialidades que movem a natureza e fazem os ciclos se completarem apenas para recomeçarem novamente. Quer dizer, enquanto o sol continuar ardendo lá para energizar aqui, a vida provavelmente seguirá oxigenando nossas relações e experiências. Nesse sentido, que é bastante metafísico, há algo de belo nesse olhar do cinema sobre a disciplina filosófica. Algo que não é puramente discursivo, mas antes destinado aos sentidos, que por outro lado não é aquele mesmo que a ciência empírica pretendeu furtar aos sentimentos. O filme de Frammartino verticaliza os mistérios mais íntimos e os preenche de significados: signos, rumos transversais, atravessamentos, tempos, dilemas, memórias, riquezas desmarcadas de atalhos. É tudo tão simples e tão complexo. É tudo tão nós.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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