Crítica

Ao tomar contato com a sinopse de As Flores de Kirkuk, pensava se tratar de mais uma história no estilo Romeu e Julieta. Um homem e uma mulher se apaixonam, mas o ódio que envolve a realidade de ambos não lhes oportuniza a chance de ficarem juntos. Ledo engano. Ao assistir ao trabalho do diretor Fariborz Kamkari, foi possível perceber logo de cara que o seu filme navegava em águas mais profundas, não sendo apenas um romance com a guerra como pano de fundo. O conflito e ódio entre os árabes e os curdos, bem como a ditadura sanguinária de Saddam Hussein no Iraque, não servem apenas como um diferente background para uma história de amor. O sofrimento do casal, aliás, é apenas um detalhe deste drama bem construído, baseado em fatos reais.

Fariborz Kamkari e Naseh Kamkari assinam o roteiro de As Flores de Kirkuk. Najla (Morjana Alaoui) é árabe. Sherko (Ertem Eser) é curdo. A história se passa durante a ditadura de Saddam Hussein no Iraque, governo que matou e torturou os curdos de forma fria e selvagem. Najla e Sherko são médicos e se conheceram durante o curso de medicina na Itália. Sherko volta a sua terra natal e manda uma carta para a namorada, dizendo a ela que os dois não deveriam mais ficar juntos. Sem entender os motivos do rapaz, Najla decide voltar também e procurá-lo. A família da moça não aceita que ela se encontre com o rapaz em Kirkuk, e a prende em casa para que não saia. Mokhtar (Mohamed Zouaoui), um amigo da família que trabalha no exército de Hussein, observa Najla e logo se apaixona por ela, mostrando-se uma pessoa amável – e explosiva – nos primeiros encontros. Najla tenta escapar das investidas de Mokhtar, mas acaba o levando diretamente para onde o seu namorado está. Sherko, então, é capturado pelos militares e torturado. Agora, Najla fará de tudo para ajudar o seu amado a escapar do cativeiro iraquiano.

O grande destaque de As Flores de Kirkuk é a performance de Morjana Alaoui como Najla. Corajosa e dona do seu nariz, a protagonista não poupa esforços para conseguir chegar aos seus objetivos. Alaoui consegue transmitir a força de caráter da mulher, parecendo uma locomotiva que nunca pode ser parada. O diretor e roteirista Fariborz Kamkari disse que sua vontade era criar uma mulher forte, que raramente aparece no cinema iraquiano. Seu intento foi devidamente alcançado, já que Najla é praticamente uma super-heroína, formulando os planos mais mirabolantes para tirar Sherko do seu cativeiro.

O que é interessante em As Flores de Kirkuk é que não é necessariamente verdadeiro dizer que Najla faz tudo o que faz por amor. Logicamente, sua afeição pelo rapaz a coloca em rota de colisão com o seu povo, mas não é apenas isso que a impele a ajudá-lo. Existe um senso de responsabilidade para Sherko que Najla carrega. Não fosse seu retorno para o Iraque, talvez o namorado estivesse bem escondido, sem chamar a atenção, sem correr riscos de morte. Mas a sua teimosia em encontrá-lo e em permanecer com ele acabaram por deixar o rapaz em uma posição difícil, nas mãos do brutal exército iraquiano. O desfecho da história surpreende, corroborando com esta divisão entre amor e senso de responsabilidade vivido por Najla.

O diretor Fariborz Kamkari é curdo, mas nem por isso pinta os árabes como figuras sem coração. Mostrando que até os membros do exército iraquiano não concordavam com os mandos e desmandos de Saddam Hussein (na figura de Mokhtar, que se recente em ter de ser brutal a mando do governo) e colocando como protagonista uma moça árabe, Kamkari parece querer mostrar os dois lados da moeda, não demonizando o antigo inimigo de forma gratuita. Existem, claro, os árabes sanguinários e sem respeito algum com o próximo, mas não são todos.

Com um terceiro ato bombástico, mostrando a dura realidade dos prisioneiros do exército iraquiano, As Flores de Kirkuk só não manda o espectador para casa atônito pelo que acabara de ver por incluir, antes dos créditos finais, uma cena poética e amorosa, ambientada logo após a queda de Saddam Hussein do poder. Se para Najla, a responsabilidade pesou em suas decisões, para Sherko, sempre foi amor.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
avatar

Últimos artigos deRodrigo de Oliveira (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *