Crítica

Muitos costumam diminuir a importância de uma premiação como o Oscar, mas o fato é que, cada vez mais, uma estatueta – ou mesmo uma lembrança no maior prêmio do cinema mundial – faz, sim, muita diferença. Claro que pode não significar muito para quem está começando e ainda tem o que provar, mas para aqueles que estão há tempo na estrada, um sinal de reconhecimento como esse é capaz de elevar o artista a outro patamar. Senão, veja o caso de Isabelle Huppert. Uma das atrizes mais consagradas da Europa, estava longe de ser uma intérprete popular em todo o mundo – ainda que venha atuando, mesmo que de forma um tanto irregular, em Hollywood, desde os anos 1970! Mantendo uma média invejável de quatro, cinco e até oito novos filmes por ano, muitos destes trabalhos da estrela que, enfim, conseguiu ser indicada pelo polêmico Elle (2016), acabavam restritos a círculos menores. Porém, essa situação parece ter mudado. Pois só mesmo para aproveitar essa sua recente superexposição é que se pode explicar o lançamento nos cinemas brasileiros deste As Falsas Confidências, longa que nem mesmo na França chegou a ser projetado na tela grande, tendo sido exibido diretamente em dvd e na televisão. Formatos que cabem melhor às suas tímidas dimensões.

As Falsas Confidências é uma peça escrita por Pierre de Marivaux (1688-1763) em 1737. Desde a invenção do cinema, este texto já contou com quase uma dezena de adaptações, porém nenhuma de grande impacto. O longa baseado em sua obra de maior sucesso até hoje foi O Triunfo do Amor (2001), com Mira Sorvino e Ben Kingsley, e mesmo assim de alcance limitado. Apontado por ter construído uma ponta entre a commedia dell’arte italiana e o teatro mais literário dos autores franceses e ingleses de sua época, Marivaux ficou conhecido como o ‘mestre francês da máscara e da mentira’. Justamente o que encontramos nesta história agora encenada por Huppert, como a protagonista Araminte, uma viúva rica, e o galã Louis Garrel, no papel de Dorante, o jovem determinado a dar o golpe do baú. Como é de praxe em argumentos do gênero, é claro que nenhum dos planos aqui expostos se desenvolverá da forma mais simples.

Construído a partir de um conceito absolutamente teatral, esta versão de As Falsas Confidências se desenvolve quase que exclusivamente em um único cenário – o grandioso Teatro Odeon, em Paris – com apenas algumas rápidas cenas, mais ao final, no Jardim de Luxemburgo – não por acaso, em frente ao imponente prédio inaugurado por ninguém menos do que a rainha Maria Antonieta. Os personagens se encontram na sacada da fachada, na sala do piano, nos camarins, na minúscula cozinha e até mesmo nos bastidores do palco. O estranhamento é proposital. As escadarias da entrada, a escuridão das coxias, o distanciamento do foyer: tudo é aproveitado como se estivéssemos diante de um palacete, algo condizente à fortuna à qual estas figuras estariam acostumadas. Ainda que, é claro, este detalhe não passe desapercebido ao diretor e roteirista Luc Bondy, que brinca com esse ambiente de modo provocador, instigando o espectador a uma reflexão condizente aos tempos de hoje, promovendo uma sintonia interessante entre cinema e televisão como só a fantasia do teatro poderia proporcionar.

Dorante é apresentado à Araminte como candidato a uma vaga de secretário pessoal. Ele está ali, na verdade, orientado por Dubois (Yves Jacques, de Belas Famílias, 2015), o mordomo, que com ele traçou o plano do rapaz conquistar a viúva e, assim, se apossar do seu dinheiro. Quem o recomenda, no entanto, é o empresário dela e tio dele, Rémy (Bernard Verley, de De Coração Aberto, 2012), que tem outros planos para o sobrinho, inclusive apresentá-lo para a auxiliar Marton (Manon Combes, de Dois Amigos, 2015), que se apaixona por ele imediatamente. Há ainda a resistência da velha madame (Bulle Ogier, veterana de O Discreto Charme da Burguesia, 1972), o Conde Dorimont (Jean-Pierre Malo, de 3 Mundos, 2012), que ameaça Araminte com um processo caso ela se recuse a casar com ele, e até, como não poderia deixar de ser, o icônico Arlequin (Fred Ulysse, de A Presa, 2010), o serviçal, aquele que tudo vê e nada sabe.

Isabelle Huppert é uma grande atriz, mas um tipo como Araminte pouco significa para ela em termos de desafio. É uma mulher frívola, que se deixa levar pelo o que os outros dizem, sentem e representam. Cai nas histórias que lhe contam, ao mesmo tempo em que tenta preservar suas próprias crenças. Lembrada por composições densas e repletas de matizes, aqui ela surge leve, quase irresponsável. Já Louis Garrel segue apostando nos cabelos desgrenhados e na barba por fazer para servir como um eterno conquistador, porém não irascível, mas como se agisse quase por acidente. Ele convence, ainda que a idade esteja lhe alcançando. E se os pontos fortes são justamente as atuações – e as dos dois protagonistas em especial – também chama atenção precisamente por assumir essas limitações. E no final, quando a brincadeira se escancara e a única verdadeira confissão acaba sendo a do próprio realizador, As Falsas Confidências vai além da vala comum a que produções do gênero são destinadas, mostrando, de uma vez por todas, que nem sempre é preciso ser sério ou carrancudo para se fazer relevante.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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