Crítica

As acácias são as carnes de Rubén e Jacinta. Carnes dos corpos que deixam pela estrada, junto do fluxo de suas vidas, de coisas que devem ser esquecidas ou não devem ser recordadas. Sobre as relações afetivas, paixões, intrigas e desejos dos personagens só temos criações mentais. “Os passados” deles não existem em imagens, estão inacessíveis a priori, mas são construídos pelas linhas: linhas do corpo, da pele, os traços do rosto, as unhas. É importante, dentro do jogo de visão que as câmeras imprimem no registro da ação dramática, que os personagens sejam assim, expressivos e corporais, que não tenham medo de revelar algo até maior que o filme. Transcendente. Las Acacias vai em busca do efeito inesperado, daquilo que o espectador não quer ver, daquele gran finale que o público anseia e que, quando aparece, não é nada disso que aparenta ser. Anticlímax. Não é também um road movie de passagem. Aqui não cabem rótulos. A experiência estética não é só amiga íntima do repertório textual, que por sua vez precisa sempre corresponder às esperanças narrativas balizadas pela necessidade de um fim. O filme de Pablo Giorgelli não tem fim, acabaria apenas quando o mundo acabasse – e é justamente isso que confirma sua beleza.

Mas o mundo é mesmo ordinário, as coisas se repetem, passam, escapam. É por isso que os espelhos do caminhão de Rubén são memórias, as madeiras que Ruben transporta há trinta anos pelas estradas que ligam Assunção à Buenos Aires são representativas desse movimento que se vai. O processo que vemos é tanto a passagem do tempo quanto a conexão espiritual com ele, pois a única forma que temos de acessar o passado é através do presente, ou seja, de memórias que podemos ter agora. O plano em que Rubén observa Jacinta se aproximar do caminhão para pegar carona, olhando-a pelo retrovisor, não raro um dos mais significativos do filme, resume a ideia de que algo ainda ficou para trás na vida de Rubén. Mas Las Acacias não cai em nenhum tipo de convenção e logo mostra seu rugido. Jacinta e sua filha, Anahí, pegam carona com Rubén nessa viagem até a capital argentina, em que o ronco do motor é a trilha sonora (não há música) e o silêncio, muitas vezes, é o melhor diálogo.

Giorgelli deixa o tempo fluir, investe não na contemplação, pois não há o que contemplar, mas antes nos movimentos internos de cada um dos personagens. E não é alegoria, pois todos se comunicam sem palavras, embora não abdiquem delas. Todavia, não existe simplicidade alguma na narrativa, e tampouco na estética, de Giorgelli. Las Acacias não poderia ser mais arrojado, mais perigoso (eis sua potência), mais experimentador (não experimental). A câmera quase sempre sufoca o personagem, esquadrinha toda sua doença, retirando-lhe, assim, sua verdade – verdade que é também relativa, pode não vir, pode vir fragmentada ou pode simplesmente ser falsa. Não se incorre na busca pela imagem icônica, pelo final aberto, catalisador de sonhos. Enquanto metade do cinema se pretende descobridor de uma nova forma de se apropriar das imagens cinematográficas, Las Acacias apenas é um fluxo delas, consciente do seu sabor, do seu cheiro, do seu minimalismo escandaloso. Não cair no labirinto da estética de festival de arte, deixando-se contaminar pelos personagens e pela relação que eles tão naturalmente estabelecem, ele atinge um efeito. Há muita pretensão em jogo, o que é ótimo.

A natureza, com toda a polivalência que a aplicação dela pelo filme pode significar, é mais que a simples bagagem que Rubén transporta, é sua vida. Fica a impressão, até pelo ambiente da cabine do caminhão, de que as acácias que vemos sendo cortadas e retiradas de seu habitat logo na abertura do filme sejam mais que meros pedaços de madeira. Todo o movimento sucede sua existência, lhe pede o sacrifício. Giorgelli filma as coisas acontecendo durante tanto tempo que incomoda o bom gosto (no sentido que nos mostra a intimidade do outro, o que pode muito bem ser assustador). Se Rubén pára o caminhão para descer e fumar um cigarro, à beira da estrada, a câmera fica com ele, inala junto, até o fim, a sua experiência. Afinal, Las Acacias não é mais que uma grande experiência afetiva. Mas não nos enganemos, este não é um filme tão belo por ser pequeno, é assim, e não poderia ser de outra maneira, porque quer ser grande.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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