Crítica

A força da imagem. Em 1884, o governo uruguaio dá ao retratista compatriota Juan Manuel Blanes (1830 – 1901) a missão de retratar José Artigas (1764 – 1850). Motivos políticos à parte, a tarefa era grandiosa. Para os uruguaios, el libertador Artigas foi mais que o rosto de um homem corajoso. Pelos ideais cultivados e feitos realizados, o homem se confunde com a identidade uruguaia e o mais primitivo dos anseios do humanos: liberdade.

Produzido para a televisão espanhola como parte da série Os Libertadores, Artigas: La Redota é o segundo longa-metragem de César Charlone, que assina o roteiro em parceira com Pablo Vierci (El Viñedo, selecionado para o Festival de Gramado de 2000). Diretor de fotografia experiente e colaborador tradicional de Fernando Meirelles, Charlone veio a ser mais conhecido dos brasileiros por seu trabalho fotográfico em Cidade de Deus (2002), O Jardineiro Fiel (2005) e Ensaio sobre a Cegueira (2008). Sua estreia como diretor se deu com O Banheiro do Papa (2007). A história de um vilarejo que se prepara para receber o Papa lhe rendeu uma série de prêmios, entre eles o de melhor filme na mostra latina do Festival de Gramado e o do júri na Mostra de Cinema de São Paulo.

Em Artigas, Charlone deixa a beleza das histórias simples do primeiro trabalhou e o mundo contemporâneo dos filmes de Meirelles para apostar em um épico. O denso material histórico e político compõem a trama que tem na incumbência do pintor o ponto de partida para a reconstrução de um mito fundador. Ao vasculhar o material que lhe é dado para produzir a pintura, Blanes (Yamandú Cruz) se depara com as notas de Guzmán Larra (na boa interpretação de Rodolfo Sancho). Larra é um espião espanhol enviado para se infiltrar entre os revolucionários e matar Artigas (em atuação pouco inspirada de Jorge Esmoris). A sinuosidade estabelece duas narrativas, ainda que a de Blanes seja relevante unicamente em termos de encaminhar o início e o desfecho do filme, ambos didáticos.

A direção demonstra convicção no caminho que pretende seguir. Por isso, o épico constrói-se com as vantagens do gênero e sem as precipitações megalômanas que costumam surgir em decorrência da importância do tema. Acerto fundamental está em incorporar a linguagem cinematográfica moderna à narrativa. A técnica da filmagem com câmera na mão mostra-se competente para enfrentar o desafio, servindo tanto naturalmente às cenas de ação quanto se mostrando funcional nos diálogos em grupo e na composição do pampa. As cores equilibradas, com predominância para o contraste entre verde e azul, deixam o filme visualmente agradável, por vezes excessivamente. A edição de Daniel Rezende (Tropa de Elite, 2007, e A Árvore da Vida, 2011, entre outros) transmite a sensação de agilidade necessária para que passagens mais pesadas, como os momentos de explicação histórica, não se limitem a sequências maçantes. Combinados, o ritmo de Rezende e a fotografia, do próprio Charlone, são a marca técnica de Artigas, uma junção arriscada e acertada.

Sitiados entre a violência dos inimigos e a brutalidade do esquecimento, este traço característico do Sul, os revolucionários entoam, entre farrapos e escassa comida, canções como bandeiras hasteadas no peito. Temos de ser constantes aos nossos ideais, lembra uma delas, porque isso nos fará gigantes. A perseverança e a comunhão de esperança daquela pobre gente intriga Larra. Quem é o homem com tamanha persuasão para levá-los adiante? Que virtude emana de seu caráter? Aos poucos, o enviado da coroa reconsidera o mito. Artigas, o homem, é apenas mais um. Falível e por vezes ingênuo, como demonstra a cena em que aceita a deserção de um dos seus sem suspeitar que ele levaria outros consigo, além de animais, dinheiro e comida. Para tristeza do governo uruguaio e surpresa de Blanes, é pela força do povo que Artigas emerge, como o centro de uma força que já não se pode deter.

Emblemática a cena em que, no campo, o comandante espalha o esqueleto de um gado. Para cada parte da carcaça, o mundo que desejam se constrói em oposição ao anterior. Não há mais volta, pois o passo dado foi muito largo. Para os que foram tão longe e deixaram tudo, não servem mais migalhas. Até porque sem liberdade não há vida que lhes reste.

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