Crítica

As famílias de ciganos habitantes de uma aldeia na Hungria sofrem constantemente com ameaças de grupos de extermínio. Anonimamente, eles dizimam famílias inteiras. Mari, seu pai e seus dois filhos, Rió e Anna, tentam seguir com suas vidas na medida em que presenciam a violência que os cerca e os persegue. Mari (Katalin Toldi) tenta manter dois empregos para alimentar os filhos e o pai doente. Ao mesmo, precisa ficar atenta ao perigo que os espreita nas sombras. Anna (Gyongy Lendvai) estuda e Rió (Lajos Sarkany) vive constantemente preocupado com a situação de sua família, ou seja, com a morte iminente que os amedronta. Do ponto de vista narrativo, Apenas o Vento quer contaminar o espectador com a angústia das personagens, fazer sentir a dor e o medo, recuar, ceder, calar. A expressividade passiva que vemos é a própria face da hesitação. A câmera balança sobre e sob os personagens, quer ser e ter com eles, imprimir o realismo, beijar o real. A respiração é captada em toda sua fruição, os sons são todos amplificados para que se estabeleça a atmosfera do horror. Para o diretor Benedek Fliegauf, a sensação do espectador deve ser a sensação das personagens.

Nas aldeias onde vivem as famílias de ciganos não há espaço para a civilidade, eles são marginais diante da sociedade, indignos da existência, por isso são afastados da vida, da “comunidade”. Na miséria, à distância do olhar do branco, eles vão vivendo. Não é sem alguma crueza que Fliegauf faz o registro das vidas que levam essas famílias, e há potência nessa relação das sensibilidades. Os problemas do filme são de ordem estética. Se a crítica e a denúncia aos grupos de extrema-direita que matam pessoas inocentes verbalizam a doença humana, todavia a câmera parece ter medo das personagens, não quer mostrá-las e sim simbolizar o medo que sentem. Por mais forte que seja a narração, a corporificação das sensações é impregnada apenas pela perseguição da câmera que, antes de filmar as personagens, acaba desenhando suas caricaturas – o que não é mais que imprimir uma fábula em meio à busca pela real, pelo físico. Aqui, a câmera não é mais que sua forma, seu movimento e sua dureza óbvia. Qualidade essa que é precisamente sua detratora.

Mas Apenas o Vento é um filme político e sobre um estado da política, e se não é necessariamente atual, é no mínimo contemporâneo. O multiculturalismo sempre foi uma afronta ao pensamento da direita extrema. Somado a isso, os resultados das práticas neoliberais, no que toca a separação das raças, sempre foi o do afastamento dos povos da vida e do espaço público. A vida, para os ciganos, é um campo de batalha. Mesmo com todo o peso da história recente e a força ideológica que a temática exige, Fliegauf filma de tal modo que, para além de mostrar os personagens e suas “questões”, apenas os expõem diante de suas dificuldades: o cigano é isso aí, esse corpo desconhecido, exótico. Artificialidades como essas impedem o espectador de reconhecer as diferenças entre os discursos e seus efeitos. O que é um filme político?

Qualquer resposta não deixará de cair em armadilhas. Entre as honras e suas formas, Apenas o Vento escapa as pretensões da radicalidade estética confinando-se em seu semelhante: aquela imagem que busca a metafísica nos significados mais explícitos encobre o olhar e torna o grito político mais escandaloso do que crítico. Ou seja, torna plástico o que bem poderia ser sujo. O que destroi o filme é seu estilo, por isso todo drama ser diluído nos sketches. A vida cigana, para aquelas ciganas e aqueles ciganos, é a negação da própria identidade. Não se pode ser quem é, tem de ser o outro, ou morrer. Essa agonia cigana e essa crueldade demoníaca que se veste nos assassinos racistas são mediadas por um jogo deformado de planos-sequência que faz a câmera corromper a aventura do olhar, o bem mais importante do espectador enquanto tal. Ao fim, nada mais resta senão a impotência diante do estilo.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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