Crítica

Amores Santos intenciona desnudar a hipocrisia por trás do discurso homofóbico e pseudo-religioso proferido por alguns sacerdotes (muitos deles gays), homens pretensamente iluminados que, em tese, deveriam ser guias espirituais, indiscriminadamente. Apoiados em leituras tendenciosas, portanto questionáveis, das chamadas sagradas escrituras, esses líderes recorrentemente disseminam o ódio, incutindo determinados conceitos torpes na cabeça de seus rebanhos, ideias que podem fomentar atos de violência. Valendo-se de um ator interpretando alguém à procura de relacionamentos virtuais, sobretudo de cunho sexual, o diretor Dener Giovanini chegou ao expressivo número de cinco mil religiosos contatados, oriundos de aproximadamente trinta países. Portanto, o fenômeno não é local, mas sintoma global de um descompasso com raízes profundas. Na tela pululam reproduções de conversas indiscretas, nas quais padres, pastores e até bispos extravasam desejos reprimidos.

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Predomina o tom confessional nesses diálogos iniciais. São reincidentes as demonstrações de pesar quanto às dificuldades de assumir-se gay em meio ao desempenho das profissões de fé. Dener intercala flertes e excertos de programas de televisão com pregações virulentas, não raro empenhadas em associar homossexuais e promiscuidade ou, em casos mais extremos, em tratar o afeto entre pessoas do mesmo sexo como estratagema do demônio para acabar com a célula máter da sociedade cristã, ou seja, a família. Amores Santos desgasta esse procedimento por repetição, ainda que tente variar o tom, aumentando gradativamente a voltagem erótica das conversas. O ideário suscitado cresce em representatividade quando o filme deixa um pouco de lado a seara religiosa e parte aos depoimentos de pessoas das mais diversas áreas, ainda que disso decorra fatalmente um desvio do mote alardeado desde o começo. Tudo é feito pela internet, os entrevistados olham para a webcam como se num bate-papo trivial.

A contundência é a principal arma de Amores Santos. A forma corajosa de abordar temas considerados tabus compensa a fragilidade do roteiro e da montagem. Dener ouve familiares, homossexuais, líderes de movimentos sociais, além de testemunhas privilegiadas da farsa sustentada constantemente por homens de batina e/ou bíblia na mão, criando pequenas narrativas conectadas por seus pontos mais evidentes. Falta ao longa-metragem aprofundar-se na investigação do que leva à construção do discurso discriminatório propagado pelas doutrinas religiosas, ou a quem ele beneficia. Na impossibilidade de controlar as variáveis, tais como a iluminação dos cenários dos interlocutores, assume-se a precariedade como ônus de um transcorrer totalmente remoto, sem contatos presenciais. A sobreposição de telas – afinal de contas a câmera grava o que a webcam transmite – infelizmente não é trabalhada em seu potencial de reflexão acerca da própria construção cinematográfica, tornando-se curiosidade de produção.

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Quando Amores Santos decide, após um longo tempo afastado do viés religioso, retomar esse direcionamento, é por meio de um movimento, no mínimo, controverso. Volta-se com tudo à interação do ator Darico Macedo com seus pretendentes. Ele se desnuda literalmente, para o deleite de padres que, inclusive, chegam a se exibir trajados com suas batinas. Como se fosse realmente necessário escancarar o gozo de ambos os lados para deflagrar a hipocrisia institucionalizada, instância já plenamente consolidada como parte de uma cadeia perversa, Dener faz questão de mostrar uma série de masturbações, até que os envolvidos cheguem ao clímax do prazer. O expediente soa praticamente gratuito, já que acrescenta ao itinerário somente o caráter explícito, aqui dispensável. A despeito da fragilidade no que tange especificamente à linguagem, ou de eventuais escolhas discutíveis, o filme merece elogios pela ousadia de encarar assuntos inflamáveis e espinhosos que precisam ser debatidos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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