Crítica

Nimr é um estudante aplicado, tanto que acabou de ganhar uma bolsa para uma das melhores universidades da região. Roy, por outro lado, é um advogado de prestígio, filho de pais bem sucedidos e esclarecidos, ocupado em conduzir os negócios da família. Os dois, ao se encontrarem pela primeira vez, se apaixonam quase que instantaneamente, numa afinidade ímpar. Esse conto de fadas gay tinha tudo para um final feliz no estilo “...e viveram felizes para sempre”, a não ser por um detalhe: Nimr é palestino, enquanto que Roy vive em Tel Aviv, e apesar de morarem a poucos quilômetros um do outro, suas realidades não poderiam ser mais diferentes. Porém, longe de se contentar em ser uma mera releitura sócio-política moderna de Romeu & Julieta, Além da Fronteira é um drama de forte conteúdo contemporâneo, que oferece ao seu espectador mais interessado qualidades muito superiores ao que uma visão superficial poderia indicar à princípio.

Palestinos não podem entrar e sair de Israel quando bem entendem. E essa restrição é muito mais institucional do que prática. Afinal, palestinos não querem que palestinos frequentem o vizinho-inimigo. Mas Nimr é selecionado por uma faculdade israelense, e por isso tem direito a um passe para ir e vir. Essa situação, no entanto, apenas oficializa aquilo que já acontece de fato: a transição entre estes dois extremos sociais é possível através de vias mais comuns – e menos convencionais. Basta querer. Como numa noite de final de semana, quando o desejo por diversão, entretenimento e sexo o leva a cruzar clandestinamente a fronteira, em busca de um bar gay onde possa ser ele próprio. Lá, entre amigos, acaba conhecendo Roy, um estranho que, aos poucos, começa a fazer parte de sua vida. De sua vida de verdade, é preciso esclarecer. Não daquela do lado de lá, onde é preciso fingir uma posição política, um comportamento familiar e até mesmo uma orientação sexual. Tudo para evitar qualquer conflito com extremistas. Ainda mais quando estes podem estar debaixo do mesmo teto.

A partir do momento que a relação entre Nimr e Roy se estabelece, o problema seguinte se instaura: como levá-la adiante? O segredo do primeiro não poderá ser mantido por muito tempo, ao mesmo tempo em que a boa vontade do segundo não será suficiente para a concretização destes desejos. A partir deste momento, quando o verdadeiro conflito de Além da Fronteira se estabelece – em qual lado dessa divisão territorial, social, política e humanitária você se encontra? – é que o filme mostra, de fato, sua força. A intolerância religiosa, o destrato familiar, o contexto econômico, a corrupção policial e a passividade administrativa irão se manifestar quase que simultaneamente, revelando aos amantes o percurso de pedras que ambos terão em seu caminho.

Trabalho de estreia como realizador de Michael Mayer, cineasta envolvido há anos em outras atividades da indústria cinematográfica e que decidiu investir nessa trama ficcional após entrar em contato com realidade similares que até hoje perduram nessa região, Além da Fronteira é um intenso e poderoso trabalho que faz uso de elementos universais – a igualdade entre os homens, o amor como sentimento maior – para colocar em evidência um conflito talvez arrefecido, porém nunca apagado. Premiado internacionalmente em mais de uma dezena de festivais, é um longa que prende a atenção do início ao fim, principalmente por saber conduzir sua audiência até uma conclusão corajosa e repleta de múltiplos significados. A resposta, afinal, não está aí para servir de doutrina, e sim para ser construída em parceria com cada um de nós.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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