Crítica

A Segunda Guerra Mundial segue sendo uma farta fonte temática para o cinema em todo o mundo. Além da barbárie das batalhas armadas e do horror de acontecimentos como o Holocausto, diversas outras histórias escondidas nas ramificações trágicas decorrentes dos conflitos acabam sendo levadas para as telas. Agnus Dei, novo trabalho da cineasta Anne Fontaine, se baseia em uma destas histórias reais, passada na Polônia em 1945. Nela acompanhamos Mathilde Beaulieu (Lou de Laâge), uma jovem enfermeira da Cruz Vermelha francesa que descobre que as freiras de um convento vizinho foram estupradas por soldados invasores, russos e alemães. Com várias das religiosas grávidas, já em seus dias finais de gestação, Mathilde passa a visitar o local secretamente para tratar das mulheres.

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Fontaine direciona seu olhar não para os conflitos armados, mas, sim, para os conflitos ideológicos que surgem do embate entre Mathilde – garota idealista, filha de comunistas, ateia – e as freiras, em especial a Madre Superiora. A contestação dos dogmas católicos é inevitável após tais eventos traumáticos e a fé das mulheres violentadas é colocada à prova, algo que é potencializado pela presença da enfermeira. Os debates levantados são interessantes – os limites da crença, a cultura do estupro, as consequências psicológicas na vida das vítimas – e na maior parte do tempo a cineasta consegue apresentá-los com sobriedade. O tom sóbrio é reforçado pela parte técnica, com longos planos estáticos que se aproveitam das paisagens gélidas da Polônia, do minimalismo da ambientação do convento e da iconografia religiosa para compor quadros esteticamente apurados.

A convivência entre as personagens gera também um sentimento de comunhão feminina que Fontaine capta com delicadeza, sempre ajudada pelo bom trabalho de seu elenco. A bela Lou de Laâge demonstra total segurança em um papel exigente, compondo uma personagem com diversas nuances. Sua relação de cumplicidade com uma das freiras, Maria (Agata Buzek), está entre as melhores coisas do filme, assim como os confrontos com a Madre Superiora, interpretada pela ótima Agata Kulesza, de Ida (2013). Em contrapartida, o relacionamento mal resolvido com o médico Samuel (Vincent Macaigne), a única figura masculina relevante do longa, não é desenvolvido satisfatoriamente para acrescentar algo de fato à personalidade de Mathilde, servindo mais como uma ferramenta de fuga para momentos de leveza e humor em uma trama tomada pela gravidade.

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Infelizmente, depois de um bom e gradual trabalho de construção de dilemas, Fontaine se entrega a resoluções fáceis, tão fáceis quanto os diagnósticos instantâneos que Mathilde é capaz de realizar mesmo nas condições mais adversas. Apesar de não adotar uma postura julgadora em relação à fé, mesmo diante de situações que podem ser consideradas absurdas, a cineasta visivelmente pende para um dos lados do embate, o que acaba gerando mudanças pouco críveis na trama, como a repentina aceitação de Mathilde pelas freiras. A ideia de impor um trauma à enfermeira para aproximá-la das outras mulheres também parece forçada, e Fontaine não resiste ao clichê de envolver a protagonista em uma aura heróica, nem à necessidade de vilanizar uma figura – que não a dos soldados estupradores – em nome de uma reviravolta cujo impacto desejado não é plenamente atingido.

Praticamente todo o terceiro ato se resume a um acúmulo de acontecimentos dramáticos que contrastam com a sutileza vista até então, conduzindo o longa para um final que se vale de um salto temporal desnecessário e esbarra no sentimentalismo. Sendo que Fontaine tinha em mãos uma resolução bem mais interessante e menos simplificadora exatamente na sequência que antecede o desfecho citado acima. São escolhas como essas que ajudam a explicar a filmografia irregular da cineasta nascida em Luxemburgo, responsável por obras medianas como Coco Antes de Chanel (2009), Amor Sem Pecado (2013) e Gemma Bovery: A Vida Imita a Arte (2014).

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Em certos momentos, Fontaine mostra ser capaz de se libertar de suas próprias armadilhas narrativas. Existe uma singeleza real no modo como retrata inicialmente o cotidiano do convento – nos cânticos, nas rezas, nas tarefas diárias – presente também em algumas cenas específicas, como quando uma das freiras aceita amamentar um bebê ou na naturalidade com que mostra um grupo de crianças polonesas abandonadas brincando sobre um caixão. A sequência em que manipula a noção de tempo, apresentando imagens que se confundem entre um flashback e um acontecimento atual, também demonstra habilidade da diretora. Mas ainda que signifiquem um avanço, estes momentos não são suficientemente capazes de transformar Agnus Dei em uma obra que represente a grande virada em sua carreira.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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