Crítica


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Sinopse

Celina entra num táxi e se depara com um homem que ela conheceu no passado, quando ele era um soldado do Exército peruano e lutou contra o Sendero Luminoso.

Crítica

O cinema sul-americano constantemente retorna ao tema das marcas das ditaduras militares que se instauraram no continente durante a segunda metade do século XX. Brasil, Argentina e Chile são os principais exemplos, apresentando regularmente novas produções que exploram o assunto, mas outros pólos cinematográficos menores também seguem essa tendência. É o caso do Peru, país de origem deste A Passageira. Fazendo sua estreia como roteirista e cineasta, o ator Salvador del Solar – protagonista de filmes como Pantaleão e as Visitadoras (2000) – utiliza esse contexto histórico – mais precisamente os acontecimentos seguintes ao fim do regime ditatorial peruano, com os conflitos entre militares e o grupo radical Sendero Luminoso nos anos 80/90 - como pano de fundo para um thriller vigoroso e bem executado.

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A história – adaptada do livro La Pasajera, de Alonso Cueto – se passa na Lima dos dias atuais, onde o ex-soldado Harvey Magallanes (Damián Alcázar) sobrevive se dividindo entre os trabalhos como taxista e motorista particular de um coronel debilitado (o argentino Federico Luppi) que foi seu comandante no exército. Certo dia, uma passageira de origem indígena (Magaly Solier) entra no táxi, sendo reconhecida por Magallanes. Ela é Celina, uma humilde cabeleireira que, quando jovem, foi mantida prisioneira por mais de um ano num quartel em Ayacucho, servindo de escrava sexual para o Coronel. Após o inesperado episódio, Magallanes encontra uma antiga foto da garota e decide chantagear o filho do velho militar, um renomado advogado (Christian Meier). O plano, porém, acaba apresentando meandros cada vez mais intrincados.

Desde a reação inicial ao rever Celina após tantos anos, percebe-se a existência de uma ligação mais profunda entre Magallanes e a passageira, algo que vai além da mera oportunidade de enriquecimento através de um golpe. Nada é tão simples quanto aparenta na trama dirigida por Solar, e conforme novas revelações sobre o passado dos personagens são expostas, os dilemas éticos vão ganhando contornos mais complexos. A começar pela própria extorsão praticada por Magallanes, que a princípio pode parecer justificável, levando-se em consideração os terríveis atos cometidos pelo Coronel, mas que vem carregada de outras questões morais. Solar mostra muita segurança ao construir sua narrativa em torno dessas dúvidas que conduzem o espectador por caminhos muitas vezes inesperados.

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A capacidade de subverter as expectativas é um dos principais trunfos de A Passageira, elemento que contribui diretamente para a criação da convincente atmosfera de suspense. Um ótimo exemplo dessa vocação está na cena do pagamento da chantagem. Ao omitir parte dos detalhes prévios da ação, Solar utiliza o fator da imprevisibilidade para elevar ao máximo a tensão da sequência. Esse espírito se mantém ao longo de toda a projeção, desviando a trama de soluções óbvias através de reviravoltas plausíveis, que nunca soam elaboradas em demasia. O diretor estreante também demonstra um bom domínio estético, que une o apuro visual ao valor simbólico – como no belo plano em que Celina, envolta nas sombras de seu passado, corre morro acima, tendo ao fundo as luzes da noite de Lima.

Os comentários sociais sobre a condição atual do povo peruano também se fazem presentes, mostrando que opressores e oprimidos de outrora – os ex-soldados, como Magallanes, e os acusados de terrorismo, como os habitantes do povoado de Celina – hoje dividem uma realidade muito próxima. Mesmo observando essas transformações, Solar faz questão de relembrar que existem características que parecem imutáveis na sociedade de seu país, como a perpetuação do poder nas mãos dos mesmos, o Coronel e o filho. Muitos sentimentos também permanecem intactos: o medo de Celina, o instinto violento do parceiro de quartel – que sente falta da “adrenalina” dos velhos tempos e, em determinado momento, acaba encontrando uma válvula de escape nas vias da tortura - ou ainda a culpa de Magallanes.

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Por mais que o protagonista demonstre arrependimento, o longa não lhe concede a saída fácil da redenção, pois, como dito anteriormente, basicamente nenhum personagem pode ser classificado simplesmente como vilão ou herói. Essas camadas de complexidade da personalidade de Magallanes podem ser sentidas no excelente trabalho do mexicano Damián Alcázar, o mesmo valendo para a peruana Magaly Solier no papel de Celina, atriz que despontou nos filmes da cineasta Claudia Llosa, como o premiado A Teta Assustada (2009). É de Solier o ápice dramático do longa, um desabafo feito na língua quíchua – dialeto nativo dos povos indígenas dos Andes – dispensando qualquer tipo de tradução para transmitir sua intensidade. Esse momento integra o clímax de simbolismo preciso sobre o estado de imobilidade das coisas, que tem no Alzheimer do coronel outra metáfora clara. Solar constata, com cruel ironia, que a história, mesmo em seus episódios mais abomináveis, pode ser convenientemente esquecida se isso estiver de acordo com os interesses dos poderosos. Só o que permanece, e jamais poderá ser apagada, é a memória daqueles massacrados por esta mesma história.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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