Crítica

Capítulo final da trilogia informal “ménage-à-trois psicológico”, ao lado de A Faca na Água (1962) e Armadilha do Destino (1966), A Morte e a Donzela se aproxima dos demais longas pela estrutura linear de sua narrativa, por um específico recorte temporal e pela formação de seu elenco, composto novamente por uma mulher e dois homens. Mas, se nos dois primeiros filmes anteriores a presença feminina era catalizadora de tensões, tesões e distúrbios sentimentais, dessa vez ela assume com força total o papel de protagonista, revelando-se mola propulsora das ações mais cruciais do enredo e centralizadora das atenções por parte da plateia. Os homens, que nos títulos são poderosos, aqui ficam à mercê dela, que jogará com sabedoria diante das reações com as quais irá se confrontar durante este curto período, apesar de permitir o vislumbre de uma revolta contida prestes a explodir.

Se o letreiro anuncia “em algum país da América do Sul”, basta estar atento aos créditos iniciais e reparar no nome de Ariel Dorfman, autor do texto original, para saber que estamos no Chile em meados do século XX, logo após a abertura política e fim da ditadura militar. Paulina Escobar (Sigourney Weaver) está em sua casa, afastada da cidade e próxima do litoral. A chuva começa, a luz cai e o rádio de pilha lhe traz notícias que recebe com desagrado. Tanto que desiste do belo jantar para dois que estava preparando e, servindo-se de salada e de um pedaço de frango, além de uma taça de vinho, decide comer no chão do pequeno armário da despensa, trancada e escondida de tudo e todos. Mas essa postura reclusa é contra quem, exatamente, se está sozinha?

Aos poucos as neuroses de Paulina vão sendo desvendadas. Quem chega em seguida é o marido (Stuart Wilson), de carona com um desconhecido (Ben Kingsley) após seu carro tê-lo deixado desamparado no meio da estrada. O atraso está explicado, mas quem é aquele bom samaritano caído das nuvens? O jantar do casal se dá aos trancos e barrancos, principalmente porque o motivo da discussão é a pauta do programa jornalístico radiofônico: ele, atual ministro da justiça do país, foi convidado para presidir uma Comissão dos Direitos Humanos que visa reparar os danos e traumas que os anos de ditadura provocaram na nação. Ela é contra, crê ser uma ação paliativa, sem efeito prático. Ele não tem como recusar o pedido, que partiu do próprio presidente. Mas se o clima entre eles está tenso, piora quando o estranho retorna à casa, com a desculpa – ou motivo verdadeiro – de ter consertado o pneu estragado.

Enquanto os homens conversam, ela foge com o carro da visita inesperada. Ao retornar, caminhando, retém o senhor, que dormia despreocupadamente no sofá, sem imaginar o que lhe esperava. Quando o marido acorda, encontra na sala seu simpático benfeitor amordaçado, amarrado a uma cadeira e com a testa sangrando. A esposa segura uma arma, firmemente apontada para aquele que ela afirma ser o responsável por seus piores momentos de tortura, enquanto presa pela repressão do governo, anos atrás. Ainda que tenha passado todo o tempo vendada, reconhece a voz dele, o cheiro dele, o jeito de falar dele. Não tem dúvida, está certa de ter encontrado seu algoz. É o momento da desforra. Mas ele insiste em sua inocência, afirma que estava em Barcelona nos anos em que ela esteve presa, que, apesar de médico, nada teve a ver com aqueles horrores. Qual dos dois está com a razão? Nem o marido, um dos homens mais influentes do atual poder público, conseguirá responder com imparcialidade.

A Morte e a Donzela é uma referência à obra de Schubert, que tocava ininterruptamente todas as vezes em que a protagonista era estuprada por seu agressor. É, também, uma peça lírica, bela e triste, tal qual o continente que foi agonizado em nome de uma lógica que hoje em dia simplesmente não faz mais sentido. Sigourney Weaver traz à tela uma mulher dilacerada, lutadora e decidida a vencer seus próprios medos, custe o que custar, numa atuação de total entrega. Stuart Wilson é o observador, enquanto que Ben Kingsley esconde sob um semblante de difícil leitura as múltiplas personalidades que um homem como o que aqui defende pode conter. E Roman Polanski faz de seu filme uma jornada à dura realidade humana, convidando seu espectador a ser júri, réu e acusador em um processo em que nenhum dos participantes sairá ileso.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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