Crítica

Se em obras como Zero de Conduta (1933), Os Incompreendidos (1959) e Adeus, Meninos (1987), para citar apenas três exemplos significativos, à infância se atribui a gênese de boa parte dos infortúnios da vida adulta, em A Melhor Maneira de Andar (1976), ainda que estejamos inequivocamente num terreno semelhante, afinal a trama se desenrola da mesma maneira num espaço de meninos, as observações surgem distintas, pois essencialmente já deslocadas aos marmanjos. Na colônia de férias há vários agrupamentos, conforme afinidades. Marc (Patrick Dewaere) é o monitor dos esportes, aquele que arregimenta os garotos mais afeitos ao futebol e às atividades físicas. Já Philippe (Patrick Bouchitey) prefere o teatro como legado aos alunos.

Essa diferença de personalidades é evidenciada desde o início, como quando Philippe tenta concentrar-se em Morangos Silvestres (1957), filme que está sendo exibido na televisão, ao passo em que Marc e outros professores jogam cartas, cantam e fazem farra. O espectador frustrado pelo barulho se recolhe ao quarto, um pouco antes da luz faltar por conta da tempestade que cai ruidosa lá fora. O jogador sai à cata de velas, mas encontra seu colega vestido de mulher. Nesse instante se cria um pacto velado de termos não discutidos. Marc, habituado a brincadeiras e perseguições, passa a pegar ainda mais no pé do amigo que teme ter seu segredo vulgarizado. A relação é ambígua, não dá para saber direito se o que há entre eles a partir dali é uma crescente atração ou uma repulsa inevitável. Talvez haja mesmo um pouco dos dois.

Claude Miller faz um filme poroso, que não se firma nesta ou naquela direção. Aos poucos, o foco da narrativa se estreita em torno dos dois personagens principais, fazendo dos demais meros adornos do conflito. Philippe tem sua fragilidade potencializada pela ameaça constante da intimidade devassada. Marc, por sua vez, sustenta uma imagem provocadora, como aquele colega que todo mundo teve, intimidador pelo uso da força ou de qualquer outro atributo de falsa superioridade. Pensando assim, ele tem um quê infantil. A presença de Chantal (Christine Pascal), namorada de Philippe, complica ainda mais as coisas. Com sua beleza quase juvenil, ela não é um adereço como os outros coadjuvantes, principalmente por elevar a tensão instaurada.

Aos espectadores mais aferrados a certezas, A Melhor Maneira de Andar pode soar vago ou mesmo inconclusivo. Contudo, convém notar que o filme é calcado não exatamente naquilo que narra, mas na maneira como narra. Por exemplo, os questionamentos sobre a real sexualidade dos protagonistas são quase periféricos, embora importantes, já que o essencial está nos pequenos jogos de dominação, poder e afeto (não necessariamente nesta ordem). Claude Miller extrai mistério das sequências, escrutinando os personagens naquilo que lhes define demasiado humanos. Determinadas passagens turvam nossa percepção, mas é importante perceber tal expediente como parte do sistema nervoso central do filme, feito dessa dinâmica na qual o saber absoluto não dá as cartas. Assim, apenas aparentemente desorientados, sem nos darmos conta, nos atemos ao essencial.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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