Crítica

A narração em off que abre A Garota de Fogo expõe a tese de que há certas coisas imutáveis. O exemplo matemático utilizado pode parecer simplista, mas serve de prólogo incisivo à complexidade do que vemos nas mais de duas horas deste filme dirigido pelo espanhol Carlos Vermut. Primeiramente, somos impelidos à comoção em torno da difícil situação enfrentada por Luis (Luis Bermejo), outrora professor de literatura, então desempregado, cuja filha pré-adolescente é desenganada pelos médicos em virtude da leucemia avançada. Aficionada por cultura japonesa, a menina sonha em ganhar um vestido de heroína, algo complicado devido à conjuntura financeira de ambos. A vontade de proporcionar felicidade a quem tem pouco tempo de vida faz com que Luis ultrapasse limites, entre eles o moral e o ético. Seu encontro fortuito com Bárbara (Bárbara Lennie) lhe abre a oportunidade de arrecadar o considerável montante necessário à realização de, ao menos, um dos desejos derradeiros da garota.

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O diretor Carlos Vermut tece a trama de A Garota de Fogo com parcimônia, de tal forma inteligente que, mesmo ela sendo marcada por diversas lacunas, devidamente disponíveis ao preenchimento por nossas possíveis conjecturas, não soa evasiva ou mesmo vaga. Ao redor de Bárbara acontece boa parte do mistério essencial ao filme. Essa esfera de progressiva importância é erigida e ressaltada tanto pela dramaturgia quanto pela encenação propriamente dita. Uma música recorrente, elementos partilhados por pessoas em situações e tempos distintos, são alguns conectores dos quais Vermute lança mão para enriquecer a narrativa com uma dimensão que transcende a enganosa superficialidade, principalmente em sequências capitais, não raro ressignificadas adiante por episódios complementares. Todas as ações, por mais descabidas que possam parecer, são resultantes de uma exacerbação do amor, condição decorrente ora do desespero, ora de traços provavelmente patológicos.

Em A Garota de Fogo as perspectivas são definidoras. Carlos Vermut alterna os pontos de vista com bastante habilidade, conscientemente modulando nossa percepção e, por conseguinte, a forma como reagimos a determinados atos. O que nos parece reprovável inicialmente, como a chantagem à qual Luis submete Bárbara, soa subsequentemente quase justificável, sobretudo em virtude do deslocamento que volta a colocar o drama paterno em primeiro plano, com toda sua carga sentimental. Esse movimento ilustra o dinamismo responsável por fazer do filme um organismo em perpétua mutação, ou seja, em oposição formal ao cartesianismo e à obsessão do professor que fala com orgulho da inflexibilidade, como se nela residisse segurança genuína, atributo pretensamente necessário para equilibrar a balança num mundo naturalmente volátil. Incógnitas como a natureza das práticas que ocorrem atrás da famigerada porta do lagarto negro são mantidas intactas em prol da curiosidade permanente.

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O comportamento dos personagens obedece a uma lógica distorcida justamente por aquilo que não cabe dentro da lógica. Diferentemente da certeza do resultado da operação matemática que soma dois e dois, são imprevisíveis e incontroláveis os desdobramentos das resoluções tomadas muitas vezes no calor do momento, influenciadas pela passionalidade. Metáforas como a do quebra-cabeça, num primeiro instante, símbolo de reconstrução, e num segundo, alusão à implosão da condição adquirida penosamente, valorizam o itinerário oriundo do roteiro consistente escrito pelo próprio diretor. A Garota de Fogo se apropria exemplarmente da tensão como fator preponderante. A resultante é a agressividade crescente, uma torrente incontrolável que se desloca com brutalidade do plano da ideia ao da ação. O efeito-dominó deflagra indistintas feridas e cicatrizes, sejam as literais ou as emocionais, consequências inerentes aos caminhos percorridos, invariavelmente tortos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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