Crítica

À primeira vista, A Fonte da Donzela (1960) pode parecer um filme mais simples de Ingmar Bergman, por sua estrutura narrativa. Não há grandes jogos de estilo como em O Sétimo Selo (1957) ou os diálogos sofridos de Sonata de Outono (1978). O longa vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro é mais seco e vai direto ao ponto, o que não significa que os temas abordados sejam menos profundos ou até polêmicos. Afinal, nada é banal na trama da filha de pais religiosos que é estuprada e morta quando está a caminho da igreja.

No primeiro take do longa passado na Idade Média, Ingeri (Gunnel Lindblom), a jovem criada, conjura o deus Odin, sem sabermos exatamente com qual propósito. Depois, conhecemos sua rotina, a relação com as outras empregadas e com a própria família. Ela está grávida após um aparente estupro e parece não gostar de onde vive. Märeta (Birgitta Valberg), a dona da casa, é uma religiosa fervorosa que mima sua filha Karin (Birgitta Pettersson), deixando-a fazer tudo que quer, seja dançar com vários homens, utilizar vestidos para simples passeios ou dormir até mais tarde. O pai, Töre (Max von Sydow), desaprova esta educação da garota, mas nem por isso é menos amoroso com ela.

A condução da narrativa é feita de forma gradual, deixando o espectador se ambientar e familiarizar não só com o local, mas também com a personalidade de cada um, o que irá provocar o grande choque na metade do filme, quando Karin, em sua inocência, é abordada por dois homens e um garoto que afirmam ser pastores. Ela oferece comida para eles que, em retribuição, são violentos, abusam dela sexualmente e, num ímpeto, a matam com uma paulada na cabeça. Uma cena crua, que causa angústia. A ironia vem a seguir: ao anoitecer, o trio vai parar na casa dos pais de Karin em busca de abrigo. Em troca, eles oferecem um vestido para vender, justamente o da jovem no dia fatídico. Transtornada, a mãe mostra ao marido a peça de roupa e o questionamento da vingança vem à tona. O que fazer?

O ápice da dúvida ocorre quando o pastor se joga contra uma árvore e a balança freneticamente até conseguir derrubá-la. Assim como os rapazes que estupraram e mataram sua filha, este homem aniquila outra vida. O vegetal serve como simbologia da Iggdrasil, a árvore que liga o mundo humano ao dos deuses da mitologia nórdica. É representação do início e do fim da existência, pois, após sua queda, a família desmorona de vez e a tragédia, ainda que disfarçada de justiça, acontece. Os valores religiosos, éticos e morais a respeito de temas como a vingança e a fé são colocados à prova. Aliás, são derrubados, como e com a própria árvore.

Bergman lida com a culpa (católica?) dos pais de Karin, que a deixaram solta, sem grandes restrições. Ainda que a jovem fosse inteligente, sua ingenuidade perante as “maldades” do mundo fora de casa não lhe eram conhecidas, talvez pela falta de um diálogo mais sincero com a família ou de sua falta (ou excesso) de proteção. As atitudes da menina, tão aberta e simpática com qualquer pessoa que cruzasse seu caminho, pode até em certo momento cair no clichê da “garota fácil”.

Uma polêmica discussão que traz à tona o machismo de quem acredita que garotas “fáceis” pedem por estupro. Questão que ainda hoje, em 2014, não ultrapassou a barreira do preconceito. Ora, quantas vezes não ouvimos alguém falar que uma mulher com certos trajes “está pedindo” para fazer sexo (mesmo que à força)? O cineasta sueco julga este pensamento ao retratar a justiça dos deuses (pelas mãos do homem) contra o trio provocador da tragédia. Mas seria esta a melhor solução para sanar o problema ou apenas o ódio, a dor e a angústia dos pais de Karin levaram a tal ato?

As provações da fé, a alma corrupta do ser humano e a perda da inocência, temáticas tão caras ao cineasta sueco que permeiam boa parte de sua filmografia, estão mais do que presentes em A Fonte da Donzela, que ainda utiliza do artifício de um milagre, em mais uma de suas simbologias, para representar a renovação que segue após a morte. Bergman pode não ter realizado aqui um de seus filmes mais memoráveis, mas deixa sua marca com um aprofundado estudo da mente humana, seus medos e culpas, e de como eles se refletem perante uma tragédia.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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