Crítica

É um grande clichê, mas é verdade e vale ser lembrado: as crianças são o futuro da nação. E o que dizer e esperar de uma nação que trata seu futuro de forma autoritária, severa e violenta? Com esse viés, o diretor austríaco Michael Haneke faz um filme desconcertante sobre o recorte de um momento histórico na Alemanha pré-Primeira Guerra. Não se trata de uma cinebiografia de algum político importante, de uma celebridade ou de um soldado. Somos apresentados a personagens comuns, pessoas que poderiam muito bem ter vivido aquela época e que representam toda a intolerância e falta de humanidade que alguns de nós, infelizmente, temos dentro de si.


Um acidente no vilarejo fictício de Eichwald envolvendo o médico (Rainer Bock) atrai a atenção de todos que por ali moram. Alguém preparou uma armadilha, um arame esticado no caminho do cavalo do doutor, que caíra e fraturara a clavícula. Este fato dispara outros acontecimentos que envolvem diversas famílias: o intolerante pastor (Burghart Klaussner) e seus filhos mais velhos, Klara (Maria-Victoria Dragus) e Martin (Leonard Proxauf); a parteira (Susanne Lothar) e os filhos do doutor acidentado, Anni e Rudi; o poderoso casal proprietário das terras do povoado, Barão (Ulrich Tukur) e Baronesa (Ursina Lardi), com seu filho Sigi (Fion Mutert); o fazendeiro (Branko Samarovisk) que acabara de perder a esposa; E, claro, o professor do colégio (Christian Friedel), homem apaixonado pela recém chegada Eva (Leonie Benesch), que observa os fatos que se desenrolam na cidade e tenta entendê-los. É ele quem nos apresenta esta história, anos depois de tê-la vivido.

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2009, com roteiro do próprio diretor, A Fita Branca vai envolvendo o espectador ao desenrolar sua trama. Haneke não tem pressa alguma em desenvolver aqueles personagens, deixando, inclusive, que o narrador da história apareça com destaque muito depois de vários acontecimentos. Somos convidados a observar o cotidiano daquele vilarejo em um momento de plena tensão. A situação daqueles indivíduos está igual ao arame que derruba o cavalo no início do filme, como uma corda totalmente esticada, sem flexibilidade alguma. Basta uma pequena pressão para que ela arrebente e a aparente harmonia se encerre. E é exatamente isso que acontece. A tolerância inexiste naquele povoado. O pai decide açoitar os filhos por terem passado a tarde fora de casa; um homem não vê outro remédio que não destruir a plantação de outro, para vingar-se de algo que foge totalmente do seu controle; um garoto recebe um grande tapa na cara por apenas ter feito uma expressão de desgosto ao saber da notícia de seu novo irmão; um homem, enfastiado da amante, lhe enche de impropérios para se ver livre do caso duradouro; Ou seja, são muitos os momentos que nos fazem olhar com certa incredulidade sobre a existência de alguma humanidade nas pessoas dali.

A trama é recheada de momentos violentos, físicos e verbais, mas o diretor escolhe privar o espectador de cenas explícitas. Portanto, nunca vemos o pai açoitar seus filhos. Haneke nos deixa do lado de fora da porta, apenas ouvindo os gemidos da criança e imaginando o que está acontecendo lá dentro. Quando uma mulher morre ao realizar seu trabalho na fazendo do Barão, ficamos sabendo através do narrador e nunca chegamos a ver seu rosto. O espancamento de uma criança, em dado momento, só nos é revelado o desfecho, com a pobre praticamente desfigurada. Se por um lado, o cineasta prefere não mostrar a violência física, a verbal chega a atingir requintes de crueldade. Alguns diálogos doem mais do que qualquer tapa ou soco, principalmente se formos lembrar das palavras ríspidas e insensíveis do médico à parteira. A baronesa também não deixa barato para seu marido, ao revelar um segredo que escondia há algum tempo.

Mas o mais chocante de A Fita Branca é, sem dúvida, a forma com que os homens tratam as suas crianças e mulheres. O pastor é, provavelmente, o exemplo mais revoltante, dada a sua total intolerância com qualquer tipo de “desvio de comportamento”. Portanto, para ele, não é nada fora do comum amarrar seu filho na cama e aterrorizá-lo com diagnósticos funestos quando este suspeita que o garoto está se masturbando. Ou amarrar fitas brancas em seus filhos para lembrá-los da pureza e inocência – quando consegue apenas mostrar para todo o vilarejo o quanto eles são, em sua ótica, impuros. E a coisa não pára por aí. Outros personagens são tão ou mais negligentes com seus rebentos. Claro que também existem momentos de doçura. E alguns lapsos de carinho aqui e ali. O amor que as mães sentem pelos seus rebentos é genuíno. A paixão que cresce entre o professor e a babá dos filhos da baronesa também o é. Com isso, Haneke mostra que nem todos são corrompidos em Eichwald.

Escolhendo utilizar apenas música diegética em seu longa-metragem (ou seja, aquela que os personagens ouvem e não a trilha sonora padrão, colocada na pós-produção), o cineasta cria uma atmosfera de silêncio. Portanto, cada sussurro, cada gemido de dor, cada grito de angústia ou choro de criança chega aos nossos ouvidos com nitidez – e no caso desses dois últimos, de forma agoniante para o espectador.

Outro detalhe importante é a mise-en-scène que o cineasta propõe. Existem enquadramentos elaborados, econômicos em passar dada informação e belos pela forma que os elementos estão colocados em cena. A mais destacável seria na sala de aula, quando o pastor coloca sua filha de costas, ao fundo da sala, de castigo. Aquele pequeno quadro diz tanta coisa sobre aquele momento, que é impossível não elogiar o talento de Haneke para os planos deste filme. Mantendo sua câmera parada muitas vezes, apenas deixando que tudo se desenrole à frente dela, o diretor remete ao estilo do cinema da época (da década de 10 do século passado) além de propor ao espectador uma espiada na vida daquelas pessoas. A atuação dos atores, naturalista, ajuda a manter um clima de realidade e o belíssimo preto e branco capturado pelo diretor de fotografia Christian Berger só agrega a esta atmosfera.

Os atores estão todos muito bem em seus papéis e apontar destaques seria replicar a lista completa do elenco aqui. Mas é importante, ao menos, trazer a figura do jovem Leonard Proxauf, que interpreta Martin, o filho do pastor. Em uma cena emblemática (tanto que virou pôster do filme), Proxauf sucumbe às lágrimas por temer os castigos divinos que seu pai lhe alertara. Cena pungente que resume bem o que é A Fita Branca, um filme que não acaba ao acender as luzes do cinema. Muito pelo contrário. É aquele tipo de produção que acompanha o espectador por muito tempo, ao refletir sobre tudo o que viu durante aqueles angustiantes 144 minutos.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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