Crítica

A Dama de Ferro é um filme muito melhor do que se temia e muito pior do que poderia ter sido. Parece complicado, mas não é. O medo vem da escolha da realizadora, Phyllida Lloyd, aclamada diretora teatral mas com pouquíssima experiência no cinema – seu único trabalho anterior foi o campeão de bilheteria Mamma Mia (2008), um sucesso de público destruído pela crítica – e pelo tema, tão bombástico quanto problemático. Afinal, trata-se da cinebiografia de um ícone dos conservadores, e artistas em geral são, de praxe, liberais e democratas. Ou seja, temia-se que o longa vira-se uma obra de propaganda contrária, que estivesse mais preocupado em atacar a biografada do que em fazer jus ao seu histórico e relevância. Por outro lado, era um projeto que carregava também muitas expectativas: só a presença da fenomenal Meryl Streep como protagonista e um roteiro escrito pela revelação Abi Morgan (a mesma do elogiado Shame, 2011) lideravam as apostas. Mas nem tanto aos céus, nem mesmo ao inferno. É bom, com grandes momentos e pontos muito fortes. Mas o potencial do conjunto anunciava algo ainda mais impactante.

O grande mérito de A Dama de Ferro  - e, segundo os principais detratores do filme, também sua maior falha – é se concentrar mais na pessoa Margareth Tatcher e menos na figura pública. O filme começa com ela já idosa, lidando com situações comuns, como indo ao mercado para comprar leite e tomando café da manhã com o marido. Mas aos poucos percebemos que nem tudo é tão simples. Afinal, ela fugiu de uma vigilância constante para fazer as compras, isso sem mencionar que o companheiro está falecido há anos – ou seja, essas conversas acontecem apenas em sua cabeça, num prenúncio de fantasia, ilusão, demência ou algo pior. Como uma menina, filha de um verdureiro, chegou ao posto de líder de uma das maior influentes nações do mundo e agora, depois de tudo isso, precisa ser cuidada como uma garota desamparada, é o principal foco do filme. Os altos, obviamente, estão na sua luta política, nas barreiras que quebrou e nos embates que enfrentou. Mas há tantas lacunas que ficam em aberto que chega-se a criar um desconforto no espectador, como se algo tivesse simplesmente sido esquecido.

O principal destaque de A Dama de Ferro é, obviamente, a perfeita e irretocável interpretação da musa do cinema hollywoodiano Meryl Streep. Em sua décima sétima indicação ao Oscar - recordista absoluta – chega a ser inacreditável que ela tenha ganho em apenas duas ocasiões, sendo que a última foi a quase trinta anos (por A Escolha de Sofia, 1982). Meryl compõe uma mulher forte e imbatível, mas ao mesmo tempo faz uma senhora frágil e incomodada com sua atual situação, porém contendo um vulcão dentro de si. Sua resignação escapa apenas em questão de olhares, que mesmo na velhice apontam para todas as conquistas e feitos que já protagonizou. A maquiagem – também indicada ao Oscar – é outro mérito, e dá um banho em trabalhos menos elaborados, com o visto recentemente em J. Edgar, de Clint Eastwood. Streep está presente em cerca de 90% das cenas, e as carrega com tamanha desenvoltura e habilidade como somente uma grande intérprete conseguiria, atravessando épocas e espaços, discussões e debilidades, fraquezas e poderes com igual maestria. Um exemplo que merece ser seguido e que todos os reconhecimentos já conquistados por este trabalho em especial, como o Globo de Ouro, o Bafta e os prêmios dos Críticos de Londres e de Nova York, são poucos ainda diante tamanha perfeição.

Forte, curioso e competente na proposta que assume seguir, A Dama de Ferro desperdiça a oportunidade, no entanto, de se tornar mais relevante dentro de um cenário político e global. Restringe-se ao íntimo e pessoal – os conflitos com o marido (o excelente Jim Broadbent, de Moulin Rouge, 2002), a inabilidade em liderar uma família, a falta de jeito com as lidas domésticas, a perda de contato com os filhos – mas perde-se em não estabelecer uma conexão com a figura mítica que ela se tornou para a Inglaterra e para o mundo. Um defeito menor, obviamente, uma vez mencionadas todas as qualidades que apresenta. É um trabalho digno de atenção e com valores suficientes para se destacar da maioria, mas que ressente-se apenas de uma mão mais forte que criasse as condições necessárias para ser indispensável.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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