Crítica

Igor, Bruno, Claudy ou Guy. Todos os personagens interpretados por Jérémie Renier nos filmes dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne parecem oferecer diferentes facetas de uma mesma figura, como se dessem continuidade aos atos do anterior, independente do nome que assumem. Em A Promessa (1996), ele era apenas um garoto de 14 anos que se vê obrigado a cuidar de uma família de imigrantes. Em O Silêncio de Lorna (2008), Renier aparecia, dessa vez, já como o amante de uma dessas estrangeiras. A relação era óbvia. A mesma coisa se dá entre esse A Criança e o seguinte O Garoto da Bicicleta (2011). Se nesse último ele era o pai desaparecido do protagonista, antes ele viveu essa figura paterna às avessas, quase pega de surpresa e sem a menor aptidão para a paternidade. Ele é filho, é criança, mas também é pai, precisa ser homem. E sua indecisão entre estes dois papeis compõem a trama desta obra vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes.

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Sonia (Deborah François, de A Datilógrafa, 2012) recém saiu do hospital, com o pequeno Jimmy no colo. Esperava que o namorado fosse buscá-la, mas nem sinal dele. Ainda inebriada pela paixão que a cega e pela felicidade da maternidade, sai determinada em sua procura. Ao chegar no apartamento que dividem, descobre que ele o alugou a um casal de amigos por uma semana. Nas ruas, pouco se sabe a seu respeito. Até encontrá-lo entre os carros em um sinal, pedindo esmola. Ele a vê, e também o menino. Se aproxima, é afetuoso até onde sabe ser, brincalhão e irresponsável. Mas está, de fato, preocupado com os pivetes que coordena em pequenos assaltos. Uma eventual vítima está para sair de um restaurante próximo. Isso é mais importante.

O golpe não dá certo, mas há sempre um seguinte. A família tradicional – pai, mãe e filho – seguem pelas ruas de Liège (uma das maiores cidades da Bélgica, com quase 200 mil habitantes) sem eira, nem beira. Se escondem embaixo de pontes, passam as noites em abrigos. Um roubo acaba funcionando para ele, e dinheiro surge com a mesma rapidez com que irá desaparecer. Serve ao menos para desfrutarem poucos instantes de conforto – a preocupação é sempre com o agora, nunca com o amanhã. Alugam um carro de luxo, passeiam com jaquetas novas e um moderno carrinho de bebê. Tudo parece estar perfeito. Só que não.

No primeiro momento em que é deixado sozinho com Jimmy, Bruno faz o de sempre: transforma tudo em trocados. Vende o garoto para um sistema de adoção ilegal. Quando Sonia fica sabendo, ele apenas replica: “podemos fazer outro”. Ela desmaia. Vai parar num hospital. Com medo de que a denuncie para polícia, Bruno sai em desespero atrás do filho. Precisa reavê-lo. Mas quem? A criança que gerou ou aquele que ele mesmo já foi, mas se nega a perceber que não mais existe? Nesse meio tempo, busca ajuda com a própria mãe. Essa sequer abre a porta da casa, só aceitando conversar no beiral da entrada. Ao descobrir que é avó, a praticidade é imediata: “traga-o no próximo sábado, à tarde, que poderei vê-lo”. Não se interessa por suas condições, problemas, medos. Bruno não tem ninguém. Talvez nem a si mesmo. E para mudar essa situação, terá que ir ao fundo do poço, pois só ao chegar ao fim da linha é que será possível dar a volta e recomeçar.

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O cinema de Jean-Pierre e Luc Dardenne sempre teve um forte caráter social. E se muitas vezes pararam para olhar os problemas dos outros, dessa vez estão voltados para si próprios, para o que acontece entre seus vizinhos e colegas e muitas vezes negamos a aceitar. Os protagonistas de A Criança talvez fossem melhor aceitos se fosse negros, pardos ou asiáticos, mas são loiros de pele clara. E sua veracidade, no entanto, não poderia ser maior. Jérémie Renier tem uma das suas melhores oportunidades ao compor esse tipo que, ao contrário do que uma impressão inicial poderia sugerir, é ele mesmo o título. A maturidade lhe é cara, não vem fácil, e quando chega é através de sofrimento e sacrifício. O choro ao qual se entrega após toda essa jornada é um pouco de todos nós. É de libertação, de arrependimento, mas também de desamparo. Nunca fez diferente pelo simples fato de que ninguém o ensinou como agir de outra forma. Isso é tudo que sempre aprendeu. E todo processo de mudança é dolorido. É difícil desculpá-lo. Mas ainda mais complicado e se negar a entendê-lo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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