Crítica

Michel Racine é o tipo de homem que, apesar de usar todo o dia praticamente a mesma roupa, neste atual momento de sua vida decide colocar como adereço uma larga manta vermelho forte ao redor do pescoço. “Assim as pessoas, quando se dirigirem a mim, olharão primeiro para o cachecol, e talvez não percebam a expressão no meu rosto”, se justifica. Sua vida muda, no entanto, quando reencontra Ditte, uma antiga – e fugaz – paixão. O problema, no entanto, é que ele é um juiz em pleno exercício, e, ela, uma cidadão convocada para servir de júri no mesmo caso que ele está conduzindo. Essa relação, já proibida antes, agora se torna ainda mais perigosa. Mas não espere um thriller com altas tensões de erotismo e sexualidade. Afinal, A Corte está mais para uma comédia dramática intelectual, bem ao gosto do que de melhor o cinema francês sabe oferecer.

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Racine, vivido com exatidão pelo olhar melancólico e, ao mesmo tempo, irascível, de Fabrice Luchini, é conhecido como “o juiz dos dois dígitos”, e isso porque suas sentenças nunca se dão em menos de dez anos. Temido e implacável, não é de muitos amigos no ambiente profissional, e muito menos fora dele. Por isso que, quando o observam entrar tarde da noite em um hotel, logo o fato se transforma em motivo de fofoca para todos. Mas ele pouco está preocupado com o que dizem a seu respeito. Afinal, entre o distanciamento da esposa e o forte resfriado que lhe abate, há ainda um episódio a ser julgado: seria o jovem Beclin (Victor Pontecorvo) culpado pelo assassinato do filho de apenas sete anos, como afirma a ex-mulher, ou tal fatídico acidente teria sido apenas um infortúnio do destino?

Diante uma situação tão problemática, um homem não pode assumir sozinho a responsabilidade de julgar quem está certo ou errado. E, para isso, um júri é convocado. Filmes de tribunal são quase um subgênero à parte em Hollywood, e não por acaso realizadores de outros países volta e meia também se aventuram por esta seara. O curioso, no entanto, é perceber as diferenças como cada nação escolhe exercer a Justiça. Na França, como se percebe em A Corte, o poder de decisão é mais equilibrado entre jurados e juiz, não recaindo exclusivamente para um ou outro lado. Justamente por isso, uma ligação extra entre esses dois extremos, ainda que não seja proibida, também não chega a ser vista com bons olhos. Racine sabe disso, talvez melhor do que ninguém. Mas precisa falar com Ditte (Sidse Babett Knudsen, delicada na medida certa). Ainda que ela esteja tão surpresa quanto ele diante desse inesperado reencontro.

A atração evidente entre os dois se dá muito mais nos olhares e pequenos gestos trocados por eles nos rápidos cafés que conseguem tomar juntos após as sessões do que em rompantes românticos ou escapadelas pecaminosas. O diretor e roteirista Christian Vincent – que já havia falado do afastamento de um casal em A Separação (1994) – assume tons mais leves, quase inocentes, para justificar a aproximação destas duas figuras, um homem rígido a ponto de doer e uma mulher leve como uma pena. Ele aos poucos vai se desarmando, revelando incertezas e desejos, mostrando-se humano de um modo quase insuspeito. Já ela conta com alguns apoios, como os colegas do júri, com quem almoça durante os intervalos diários, ou a filha, que lhe questiona avidamente sobre cada novidade. De um jeito ou de outro, no entanto, o título A Corte ganhará mais de um significado, referindo-se tanto ao local onde passam a se encontrar, como também à prática que começa a se dar entre eles.

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Fabrice Luchini, um dos grandes intérpretes franceses da atualidade, foi premiado por este trabalho como Melhor Ator no Festival de Veneza – de onde o filme saiu também com a estatueta de Melhor Roteiro. Um resultado justíssimo, e isso que ele concorria com nomes como Alfredo Castro (De Longe te Observo, 2015), Christopher Plummer (Memórias Secretas, 2015), Guillermo Francella (O Clã, 2015) e Eddie Redmayne (A Garota Dinamarquesa, 2015), entre outros. Já a dinamarquesa Sidse Babett Knudsen ganhou o César – o Oscar do cinema francês – como Melhor Atriz Coadjuvante, batendo concorrentes como Sara Forestier (De Cabeça Erguida, 2015) e Noémie Lvovsky (Um Belo Verão, 2015), ambas igualmente excelentes. Não que tais resultados sejam determinantes, mas servem como norte para apontar o quão superlativas são as atuações vistas em A Corte, que ao mesmo tempo em que elevam o resultado final, não obscurecem a trama em debate e os desenlaces entre certo ou errado, tão distantes do radicalismo e cujos parâmetros são tão facilmente esquecidos no exercício do cotidiano. Seja num tribunal ou mesmo em nossas vidas privadas.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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