Crítica

O juiz Pierre Michel (Jean Dujardin), antes encarregado de questões estritamente relativas a menores de idade, é promovido à liderança do combate ao crime organizado francês nos anos 1970, bem no auge da proliferação das drogas. Homem de retidão inquestionável, ele se assemelha a Eliot Ness, agente do tesouro norte-americano, famoso historicamente por empreender uma verdadeira caçada a Al Capone. A diferença é que o personagem interpretado por Kevin Costner no clássico Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma, pegou em armas.  Pierre, por sua vez, lutou com a lei embaixo do braço, quebrando pontualmente seus códigos a fim de aplicar a justiça. O cineasta Cédric Jimenez filia A Conexão Francesa à tradição dos filmes policiais em que a tenacidade de um indivíduo destoante dos demais provoca colapso num sistema tão escuso quanto enraizado na sociedade. Diante de alguém que tem encrustado em sua essência o ímpeto de fazer o bem, a delinquência começa a sucumbir.

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O protagonista de A Conexão Francesa é concebido como um idealista incorrigível, sem muitas camadas além das proporcionadas pelos esforços que ele encabeça contra a disseminação dos narcóticos em Marselha, um cenário paradisíaco nas margens do Mediterrâneo. A menção ao superado vício em jogatina é só uma tentativa pálida de adicionar significantes à sua jornada pessoal. Acusado pela mulher de repetir um padrão danoso no desempenho de sua função, por, segundo ela, estar mais preocupado em vencer que necessariamente em corrigir a anomalia das ruas, Pierre não demonstra abalo em virtude do possível acesso a uma parte sombria de seu passado. O longa não se detém nisso, tampouco nos estragos sentimentais ocasionados pela ameaça de abandono que ele sofre adiante. As coisas se resolvem de maneira um tanto apressada na seara sentimental e psicológica, já que o imprescindível aqui é seguir pistas e montar um quebra-cabeças estritamente criminal.

Essa falta de cuidado com o estofamento dos personagens depõe contra a realização de Jimenez, no mais um exemplar repleto de energia, com um ritmo que acentua a sensação de urgência crescente. O tempo que o filme dedica ao desenho do chefe do tráfico, Tany Zampa (Gilles Lellouche), demonstra a intenção de aproximar polos antagonistas, apresentando suas similaridades como homens de família e profissionais obstinados, por exemplo, a despeito das óbvias e incontornáveis diferenças. Contribui para isso a ressaltada semelhança física entre Dujardin e Lellouche. Contudo, essa relação, que se desenvolve num plano simbólico, é insuficiente para, de fato, causar uma fricção determinante no transcorrer da trama. Tem-se a impressão de que a qualquer momento haverá um afunilamento, ou seja, que o herói e o bandido principais duelarão como num bom e velho western, algo que acontece apenas timidamente, contrariando a expectativa criada.

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Uma sensação de incômodo percorre subterraneamente A Conexão Francesa. A adrenalina perceptível em algumas sequências, especialmente nas de ação, não dá conta de enxertar tensão no conjunto. O filme é mais bem resolvido nas conversas de gabinete, em meio à politicagem intrínseca à quimera que Pierre decide enfrentar. As pessoas em cena são importantes enquanto peças de um jogo, pois condicionadas pelas implicações de seus papeis sociais. Há a exposição do aspecto familiar, das dúvidas que sobrevém a cada nova investida da marginalidade, estas que tentam deflagrar a fragilidade de Pierre, mas não uma representatividade satisfatória daquilo que pretensamente move ambos os lados. Embora consiga contar essa história, baseada vagamente em fatos, com certo grau de competência, conquistando nosso interesse, Jimenez deixa exposta a fragilidade de sua concepção narrativa justamente por não se render de todo à emulação do subgênero no qual, então, apenas resvala, e, ainda assim, reduzir os personagens a meros arquétipos consagrados pelo mesmo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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