Crítica

A Casa de Tolerância é um longa de horror sobretudo porque é sobre o horror do humano. E o filme de Paul Hyett começa de forma sintomática: com paciência, vai esquadrinhando o espaço que vai ser seu campo de batalha, dando forma àqueles rostos rasgados e ferozes, construindo o ambiente degradante e opressivo para o qual jovens meninas são levadas após serem arrancadas de suas casas, diante de familiares assassinados em meio à guerra. Lá, servem de objetos sexuais aos militares que o dono da casa, Viktor (Kevin Howarth), recebe de bom grado. Lugar distante do espaço urbano, escondido, ponto de difícil acesso, portanto perfeito para o negócio. Quem paga bem, pode espancar e estuprar à vontade. As vítimas, amarradas e dopadas constantemente para estarem prontas para o próximo “usuário” de seus corpos, nada podem fazer a não ser ensaiar um grito – mas a voz trava, engasga. O trabalho de uma delas, Angel (Rosie Day), consiste em drogar as outras e prepará-las para o abuso militar.

Os militares que chegam ao local agem com determinada violência, cheios de si, dominantes, poderosos, brutos. Mas todo poder é um poder de argila. Angel logo encontra uma possibilidade de combatê-los, e começa logo pelo maior e mais forte deles. A poesia violenta do filme de Hyett é a medida dessa luta, é a ausência das palavras que não saem da boca de Angel (ela é muda), mas que correm por seus olhos que vibram e que não escondem sua sangria. Palavras que se transformam em imagens: força total, sutileza ao mostrar o esfacelamento do domínio de um corpo (mais forte), sobre o outro (mais fraco), no ritmo alucinante de uma guerra que é travada internamente enquanto outra é conduzida externamente. Esse paralelo com a guerra e com um estado de inércia política é algo que A Serbian Film (2010), tentou fazer infantilmente. Mas aqui as coisas funcionam sempre como uma relação de poder, de força e resistência, pois A Casa de Tolerância é também sobre os limites desse poder. Angel, nos momentos em que não há ninguém por perto, entra na “tubulação” da casa, o que permite que ela consiga chegar até qualquer peça. Mas ela só consegue isso por ser do tamanho que é, por agir como age, por impulsos, sem muito ponderar. Instinto de sobrevivência.

Entre a forma, que consiste em pensar como agenciar as imagens e dispô-las no espaço cênico, e o resultado delas (o conteúdo), o filme de Hyett é a síntese de um cinema que se opõe a outro que é muitas vezes histérico e banal, para quem a imagem do horror e do medo é apenas a duração de um choque, a presença de um susto, mas que morre enquanto matéria. Nas cenas graficamente violentas, Hyett mantém o plano por um tempo não muito longo, nem curto demais, ao mesmo tempo em que mantém a câmera respeitando uma distância média, sem tremer gratuitamente (o que nos permite ver, mas que não quer vejamos apenas isso) o que é suficiente para evitar a aventura fácil da violência e do estilo de certa herança maldita do pior cinema americano do gênero. Assim, ele combate esteticamente a própria ideia de representação, de sentido e de valor do jorro de sangue e de cérebros.

Voltamos ao corpo. Ela se contorce para caber nos cantos da casa, por entre as paredes e pelo interior de sua própria consciência. Incapaz de falar, mas não inapta para amar e para odiar, ela sobrevive ao inferno (não é por acaso que seu nome é Angel) por uma graça divina, seu corpo é seu mais poderoso instrumento de resistência, sua beleza e seu sangue, sua inocência e sua violenta coragem. Ela se desenvolve poeticamente capturando toda a violência do espírito humano com firmeza, respondendo a ela com o desespero súbito e raivoso que seu olhar coloca contra seus oponentes. Sua maior fraqueza converte-se em sua grande potência. Não há como vencê-la em terrenos fechados, lugares de espaço limitado, pois a geografia do seu corpo a favorece, a torna grande e venenosa. A poética impregnada nas imagens é, portanto, uma relação entre esses espaços e com os buracos preenchidos (significados, valorizados, potencializados) pela necessidade candente em usá-los como trincheiras. O corpo humano é mesmo a mais bela invenção de Deus.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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