8 nov

Para Além da Curva da Estrada :: Entrevista exclusiva com Guilherme Azevedo

Embora Para Além da Curva da Estrada (2017) seja apenas o seu segundo longa-metragem, o diretor Guilherme Azevedo possui uma larga experiência audiovisual, fruto de um trabalho anos a fio como repórter cinematográfico. Sua predileção sempre foi trabalhar com matérias mais extensas, que demandassem processos longos e acurados. Depois de estrear nas telonas com Tim Lopes: Histórias de Arcanjo (2013), homenagem ao amigo e colega de profissão assassinado em pleno exercício da função, Guilherme pegou a estrada e fez impressionantes 25.000 quilômetros por diversas regiões do país – só não passou pelo Sul – em 50 dias de testemunho do cotidiano dos caminhoneiros e de demais agentes da complexa e imprescindível malha brasileira do transporte rodoviário de carga. Neste Papo de Cinema exclusivo, o diretor comenta um pouco acerca da construção do documentário, da interação com Jorge Lisboa, espécie de protagonista, e de suas experiências Brasil afora. Confira.

 

Qual era o ímpeto inicial ao cair na estrada para fazer este documentário?
Na verdade, sou jornalista, venho de televisão e sempre gostei muito de fazer documentários, reportagens mais longas e aprofundadas. Há 20 anos viajei do Norte ao Sul na boleia de um caminhão para uma reportagem, embora não tenha sido uma jornada tão grande como a de agora. Sou fascinado por histórias da estrada, relatos de seres humanos que vivem a paixão pelo que fazem. E os caminhoneiros merecem todo o nosso respeito. Desta vez, viajei durante 50 dias na companhia de seis profissionais (entre eles, Nando Gomes, produtor de campo, e Jackson Cerqueira, assistente), contando com uma van de apoio para o equipamento técnico. Eu, o Jairo Ferreira, diretor de fotografia, e um técnico de som (Carlo Sotto e Vitor Góes se revezando) viajamos quase 100% do tempo dentro do caminhão com o Jorge. Eu queria pegar a estrada, ver o que encontraria. Evitei interferir na rotina, logicamente dentro de um cronograma prévio, mas interferi o mínimo possível na vida do Jorge.

Jorge Lisboa, o protagonista e mediador do documentário

Como o Jorge, essa figura emblemática e mediadora, entrou no filme?
Conheci o Jorge na pesquisa para o Tim Lopes: Histórias de Arcanjo, meu primeiro longa-metragem. O Tim iria fazer uma reportagem especial para o Fantástico (programa dominical da Rede Globo) com ele, exatamente sobre a vida dos caminhoneiros. Fui a Petrópolis, onde ele mora, para conversar acerca da ideia do documentário. Ele brincou, dizendo que eu não iria fazer, obviamente se subestimando, achando que sua rotina não dava um filme (risos). E, com certeza, ele é um mediador importante com os outros caminhoneiros.

 

O que mais te marcou nessa viagem de aproximadamente 25.000 km?
O que eu vivi foi um mix de sentimentos. A gente não tem ideia da importância dos caminhoneiros, do que esses profissionais fazem pelo país. Quis mostrar um pouco da vida deles, abordá-los como seres humanos. O resumo é que eles são uma ferramenta importante para a economia do Brasil. Oitenta por cento de tudo o que a gente consome passa pelas mãos deles. Fiquei muito mexido com várias situações. Tocou-me especialmente a história da Dona Lindaura, mulher tão forte e guerreira, que começou na lavoura, viveu 58 anos essa vida de caminhoneira, com o filho herdando posteriormente sua paixão pela estrada, vivendo uma crise existencial e pessoal, em meio à admiração pela mãe. Esse exemplo é muito bonito. Chamou a minha atenção, também, a quantidade de mulheres que vivem nesse mundo.

 

Então, por que não registrar mais mulheres caminhoneiras?
O primeiro corte do filme tinha, mais ou menos, 3h50. Eu quis explorar mais a presença da mulher como agenciadora de cargas, especialmente a partir da Dona Lindaura, que foi caminhoneira e depois enveredou por essa atividade. Tem, também, a Cristina que sustenta a família como agenciadora. São pessoas que vivem essa rotina da estrada. No início do filme tem um casal, e a mulher fala assim: “largo o marido, mas não largo a estrada”. Ela gerencia a dinâmica do casal, a criação dos filhos, faz daquilo sua vida. As pessoas que encontrei na estrada são muito apaixonadas. Aliás, como é impressionante a humildade e o envolvimento daquele borracheiro que se diz desgostoso sempre que sabe da morte de um caminhoneiro.

Lindaura Jordão, agenciadora de fretes e ex-caminhoneira

Por que as questões das drogas e da prostituição são mencionadas, mas não aprofundadas?
Sobre drogas, abordo a internação de um personagem que trabalha com carga fechada. Menciona-se o uso de rebite, de cocaína. Ele quase perdeu a perna, teve trombose, uma série de complicações por conta do uso de substâncias para dar conta do trabalho exaustivo. Em relação à prostituição, durante os 25 mil quilômetros percorridos, me guiei mais pela vivência do Jorge. Ele diz que a prostituição mudou muito, caiu vertiginosamente porque as redes de postos de combustível estão se preocupando com isso, afinal de contas elas não atendem apenas caminhoneiros, mas também ônibus com passageiros e turistas. O que vi de prostituição na estrada é o que está no filme. Aliás, eu ficava atento a isso na viagem. Por incrível que pareça, vimos poucas prostitutas no percurso. Se eu tivesse encontrado situações mais graves, certamente me aprofundaria nelas. Jorge disse que as meninas acabaram sumindo, pois foram gradativamente expulsas.

 

Você tem uma larga experiência como repórter. Este é o seu segundo longa para cinema. Era uma preocupação se distanciar de um modelo televisivo/jornalístico de documentário?
Sim, com certeza. Sou de imagem, da fotografia. Minha esposa me deu um feedback importante acerca do filme. Ela disse que parece que não tem uma câmera na boleia. Era bem por aí a minha intenção. Quis fazer uma narrativa cinematográfica, em que pudesse interferir o mínimo, e parece que consegui, né (risos)? O filme está leve, suave. Direcionei o Jorge para ficar o mais espontâneo possível. Abri as câmeras e fui registrando. A pretensão era essa.

(Entrevista concedida por telefone, direto do Rio de Janeiro, em novembro de 2017)

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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