Esta carioca nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, passou grande parte da vida no Rio de Janeiro, para onde se mudou, com a família, ainda pequena. Após passar por mais de uma década morando no exterior, onde teve seus primeiros contatos com a produção cinematográfica – principalmente na França, onde se envolveu nas produções de longas de sucesso, como Joana d’Arc (1999) e Carga Explosiva (2002) – ela voltou em 2005 para se arriscar no seu maior sonho: estrear como realizadora. E o aguardado primeiro longa-metragem de fato veio, em 2012: Disparos, uma história urbana, com toques de violência e humor, que foi recebido com entusiasmo no último Festival do Rio. Jornalista, roteirista e agora, cineasta. Foi sobre tudo isso que ela conversou, com exclusividade, com o Papo de Cinema. Confira!

 

Disparos foi inspirado numa história verídica que teria acontecido com um conhecido seu. Como foi isso e o que mais lhe motivou neste drama?

Na verdade, o que aconteceu foi esse fato inicial, de um fotógrafo que foi assaltado e que assiste, quase que em choque, ao atropelamento solidário do ladrão. Isso foi o que mais me impressionou, que me levou a comentar com todo mundo. Mas o pontapé inicial para a realização do filme não veio do ocorrido em si, mas da reação e dos comentários que recebi ao comentar a respeito. Houve aqueles que me devolveram uma história equivalente, mostrando que o que havia me espantado talvez fosse mais comum do que havia imaginado. Tinha no fundo a questão de como as pessoas estavam transformando seu medo em uma arma, agindo contra a insegurança urbana e escapando do controle e da reflexão das pessoas. Isso foi a primeira coisa que me fez crer que esse filme teria lugar para existir.

Caco Ciocler e Juliana Reis

Mas nem todo mundo concordava com esse tipo de reação, não é mesmo?

Pelo contrário! Teve um outro lado que me deu uma resposta mais crua, e vinda de muita que gente que eu considerava do bem, pacifistas até! Eram pessoas que viam naquela atitude do motorista, o que atropelou, um ato de bravura, de coragem. O primeiro instinto natural das pessoas é sair de fininho, de não se envolver. Então, quando alguém decide agir, é uma atitude generosa. O fato dessa ação ser assimilada como uma questão bacana foi o que me impulsionou a fazer o filme. Fiquei angustiada ao perceber algo assim acontecendo sem questionar, sem analisar. Esse foi o fato real que baseou o filme, que deu o inicio. Mas na verdade trata-se de uma colcha de fatos reais.

 

Qual disparo incomoda mais, a do ataque ou o da defesa?

Eu acho que o filme propõe uma visão macro de uma situação é real, que existe, e que precisa ser discutida. A gente está assistindo hoje, no Facebook, por exemplo, grande exemplos de motivação popular – como o caso do Deputado Marcos Feliciano, que gerou uma grande ação social de pessoas unidas contra algo institucional. Mas me pergunto o quanto esse movimento de tantos brasileiros, que vai contra alguns, por outro lado não legitima os Renans Calheiros, os Sarneys, que não chegam a ser incomodados nos seus lugares? Como a gente precisa ser mais autocritico, do que apenas crítico. Não é que seja fácil criticar, mas profundamente, dentro da nossa cabeça, é mais fácil colocar a questão longe da gente – nos poderes públicos, por exemplo – do que analisar no que estamos nos tornando enquanto parte dessa sociedade. Entendo os meus personagens, em muitas coisas agiria igual a eles. Disparos procura trabalhar tanto com o impulso, com o instantâneo, quanto com o que perdura. E o que está por fora do quadro? Como fica? É um filme pequeno, mas a ambição dele é muito mais complexa do que o que se vê na tela.

 

Você compreende e justifica estes personagens?

Eu me vejo em todos eles. Nas mulheres e nos homens. As reações que eles apresentam reconheço como passíveis e longe de um julgamento. Tive muito cuidado no momento de escrever, de montar, de filmar… foi muito presente na minha preocupação o que esse filme iria dizer a partir da história que estou contando. A ideia de que não queria partir de um julgamento politicamente incorreto foi muito libertadora.

Cena de Disparos

Como foi a seleção dos protagonistas, o Gustavo Machado e o Caco Ciocler?

Foi como se um anjo da guarda tivesse interferido a favor. Dentro de um contexto como esse, de um filme que nasceu muito independente, muito pequeno, conseguir ter ao nosso lado nomes da magnitude deles foi impressionante. Hoje o Disparos até existe, tem um reconhecimento, alguma importância. Mas no início não era nada disso, era apenas uma louca – eu (risos) – querendo filmar uma história maluca (risos). Sinto a escolha destes atores como um grande golpe de sorte e de felicidade. Posso não estar na lista dos jovens realizadores que fazem tudo serenamente, com calma, cada etapa de uma vez. Sou mais intensa, atrapalhada, tudo ao mesmo tempo agora. E o filme vai por essa pegada, é muito impulsivo. Cada encontro foi um achado. Começou pelo diretor de fotografia, o Gustavo Habda, que foi quem me convenceu de que o filme existiria. E ele só foi possível, de fato, por uma somatória de conjunções felizes.

 

Como foi a relação no set com o Gustavo e com o Caco?

Não consigo imaginar outros atores nas peles destes personagens. Nem consigo lembrar se haviam outras opções. Sei que não foi minha primeira ideia buscar atores em São Paulo, no entanto, mas a generosidade deles foi determinante para o sucesso do projeto. Os dois são uns queridos, são maravilhosos, foram tudo para mim. Havia uma química impressionante entre eles, é possível perceber a sinergia que rola entre os dois. Trabalhar com eles foi fantástico, se for possível os terei sempre ao meu lado!

Gustavo Machado em Disparos

Disparos aborda também a questão da noite gay. Essa foi uma ideia que já estava desde o princípio?

Isso tem a ver com a história real, pois ela aconteceu mesmo em frente a uma boate gay, na Lapa. Isso no Rio de Janeiro logo após a cidade ter sido coroada como capital gay do mundo! A questão gay está dentro dos centros urbanos hoje em dia de um modo indelével. Não ter gay numa história passada numa grande cidade como o Rio de Janeiro é como não ter favelado, não ter negro, não ter mães solteiras… tudo isso faz parte do nosso mundo de hoje. Mas, curiosamente, não existiu uma urgência em abordar uma trama gay, essa questão surgiu de modo natural. Existiu, sim, uma vontade de comentar como a solidariedade desanda em um atropelamento e falar da ideia de que a busca de afeto também pode acabar em algo no mesmo nível. Uma das histórias reais que ouvi e que somaram ao filme foi a do “boa noite cinderela”. O que fica é a violência, mas há também a memória afetiva, até mesmo romântica, da situação. Isso também me surpreende. E o (Gilberto) Gavronski entrou como quem entende e compreende isso, foi ele que me trouxe esse tipo de emotividade.

 

A recepção no Festival do Rio foi muito bacana, ganhando três importantes prêmios. Como você encara este tipo de reconhecimento?

Olha, vou ser extremamente mal agradecida com o júri: me causou um problema terrível (risos)! O processo de realização foi tão artesanal, que nossa maior ambição era de que conseguisse falar com o público, conseguisse se comunicar. Ser viável comercialmente não era algo presente, estava muito longe da minha pretensão. E com o Festival do Rio essa ambição surgiu dentro de mim. Foi aí que comecei a acreditar que o filme poderia ir mais longe – e que também fez com que eu desse com a cara no chão! Cada pessoa que assiste, a cada comentário que recebo, quando alguém me diz o que o filme lhe transmitiu, fico muito emocionada. É a satisfação de ver o filme existir plenamente. Os prêmios me fizeram acreditar que o filme seria um grande sucesso, o que me levou a lutar por algo maior, mesmo com um orçamento mínimo. São prêmios importantes e extremamente cinematográficos, está na veia do que o filme realmente é. Foi muito feliz, mas encheu tanto a bola que me tirou um pouco das expectativas.

 

Disparos foi lançado no centro do Brasil no final do ano passado. Como foi a recepção do público?

Bom, em termos de estreia, foi um desastre absoluto. Do ponto de vista concreto, com apenas 15 cópias, fizemos pré-estreias em Brasília, Recife, Curitiba, lançamentos em São Paulo e no Rio de Janeiro, e todo esse esforço acabou sendo meio que abortado. Eu faço um mea culpa por ter acreditado que os prêmios do festival e as boas críticas poderiam superar os poucos recursos que tínhamos disponíveis. Disparos foi lançado junto com Gonzaga: De Pai para Filho, Os Penetras, A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2 e 007 – Operação Skyfall! Não teve como, né? O retorno na imprensa, nos blogs, na internet, da crítica, das pessoas que comentavam, foi excelente, mas quem entrava numa sala de cinema que se arriscava a exibir o filme encontrava 3 ou 4 pessoas assistindo. A época foi muito infeliz, e o filme durou menos de uma semana em cartaz. Filme brasileiro, em sua maioria, só é sucesso de público quando cresce com o boca a boca, e não tivemos essa oportunidade de se fazer valer dos bons comentários. Agora estamos ressurgindo, quase como uma fênix. E tem mais projetos, outros filmes virão. Esse lançamento agora, no sul, deveria ser o nacional. Vamos ver se agora temos melhor sorte.

Juliana Reis no set de Disparos

O que o vem pela frente pelas mãos de Juliana Reis?

Projetos hão, bastante. É aquela coisa que todo jovem ou velho cineasta acumula, ao longo do tempo, ideias para se fazer. Eu tenho várias. Confesso que quando vejo o Soderbergh anunciando seu último filme, o Greenaway dizendo que o cinema morreu, consigo entender. Há tanta ousadia narrativa na televisão, por exemplo, que é quase surpreendente perceber o como o cinema acabou se tornando um elemento mais covarde, pois é muito difícil e é preciso ter uma rede de segurança muito forte. Fazer filmes, como gostaria de fazê-los, enquanto autor, me pergunto se ainda há espaço, se há lugar para esse tipo de proposta. Mas os projetos existem e não hesitaria um segundo em realizá-los, a questão é só como viabilizá-los.

 

(Entrevista feita por telefone desde o Rio de Janeiro no dia 21 de março de 2013)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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