Como toda profissão, a de jornalista exige algumas posturas. Por exemplo, manter certa distância dos seus entrevistados em nome da imparcialidade. Mas, vamos combinar, às vezes isso é bem difícil. Até hoje me arrependo de não ter contado para o Roberto Carlos (o cantor) que eu o detestava quando criança – minha mãe ameaçava fugir com ele cada vez que se incomodava em casa. E sim, me arrependo de não ter levado minha mãe para conhecer o Rei no camarim quando o entrevistei. Por isso, ao escovar os dentes naquela manhã de domingo, decidi que ia dar uma tietadinha.

Já tinha visto Matt Damon ao vivo e a cores uma vez, bem distante dos holofotes de sets e red carpets. Eu estava num orelhão em frente a uma loja de conveniência perto do estúdio da Sony. Um mendigo esperava que sobrassem alguns cents do meu telefonema. E quem sai da tal lojinha? Damon, ele mesmo: parou para conversar com o mendigo, e lhe deu alguns dólares. Como se isso não fosse fofo o suficiente, Damon falou de um jeito tão delicado – “Have a nice evening, Sir…” – que fiquei irremediavelmente encantada. Detalhe: eu tinha acabado de sair do dentista, estava fazendo tratamento de canal, e naquele momento odiava tudo e todos. Damon me mostrou que a vida pode ser bela.

Fazer o dever de casa para entrevistar um astro de Hollywood é fácil. Pela internet, descubro que Matt Damon nasceu em 1970 sob o signo de Libra, tem um irmão escultor, por pouco não terminou a faculdade de Literatura Inglesa em Harvard. Com o amigo de infância Ben Affleck, arrombou as portas de Hollywood e se transformou em ídolo da multidão de cineastas aspirantes espalhados por Los Angeles com o roteiro criado a quatro mãos, Gênio Indomável, indicado a 9 Oscars em 1997 (levou os de Melhor Roteiro Original e Ator Coadjuvante, para Robin Williams). Minha missão era entrevistá-lo sobre A Identidade Bourne (The Bourne Identity, 2002), o primeiro filme da série. Damon é Jason Bourne, um assassino treinado pela CIA, passando por uma severa crise de amnésia. É um thriller dos bons, filmado na Europa sob a batuta de Doug Liman. O diretor vem de uma carreira em produção independente – segundo o ator, isso foi o que mais o atraiu no projeto.

É justamente o que não me convencia em Matt Damon como um herói de ação, sua carinha de anjo, que dá tempero ao filme e a toda a série. Jason Bourne tem momentos de Homem-Aranha ao descobrir seus poderes: ele sabe lutar, atirar, fala diversas línguas, mas não se lembra como nem por quê. A alemã Franka Potente, com experiência em ajudar homens em apuros (passou um filme inteiro suando para salvar a pele do namorado no ótimo Corra Lola Corra, 1998), é Marie, a parceira acidental de Bourne. (A propósito, sobre o ator, Franka comentou: “Ele é gentil, super concentrado no trabalho, mas ao mesmo tempo engraçado. Deixa todo mundo à vontade, apesar da grande estrela que é”).

Chego ao Hotel Four Seasons, em Beverly Hills, às nove e meia da manhã. Na mesa da recepção, morangos enormes (típicos da Califórnia) cobertos com chocolate. Um farto café ajuda a nos distrair, dezenas de jornalistas de todo o mundo, enquanto nos revezamos em entrevistas com elenco e equipe técnica, em suítes transformadas em salas para coletivas e mini estúdios de televisão. Rascunho algumas perguntas, até me chamarem para ficar “on deck” – sentada em uma das cadeiras acomodadas na porta da suíte onde está Matt Damon. É como se você estivesse em um parque de diversões, na fila de uma montanha-russa. Então, depois de uma boa meia hora de espera, chega a sua vez de sentar no carrinho: “Tanira, you’re next…”, me avisa o assessor, e entro na suíte. “This is Tanira, from Brazil”, me apresentam para Damon.

Do Brasil? Então, você vai ficar acordada hoje à noite?, ele pergunta. Por quê? – eu me pergunto. Ah, sim! Futebol! Era dia de estréia do Brasil na Copa do Mundo. Aproveito a “deixa” e conto a história da loja de conveniência. Papo para quebrar o gelo e “ganhar” o entrevistado. Com detalhes (até sobre a minha dor de dente!), e digo que achei aquilo muito fofo (sim, isso foi a minha “tietagem”). Ele parece curioso, surpreso. “Well… Cool! All right!” – sorri, meio sem jeito.

Mas… de volta ao trabalho!

Neste primeiro filme, Bourne tem um passaporte brasileiro, uma das suas tantas identidades. Pergunto se ele gostaria de visitar o país.

Eu adoraria ir ao Brasil. Recentemente estive na Argentina  fazendo um filme independente (N.E.: Gerry, 2002, de Gus van Sant), e numa certa altura quase mudamos a produção para o Brasil. Sei que algum dia ainda vou, tenho que conhecer o seu país!”, responde.

 

A Identidade Bourne é um filme com muita ação, e Damon dispensou dublês em muitas cenas. Um sonho realizado para um garoto, um ator?

É! Treinar para o papel foi como realizar um sonho, porque durante cinco meses estudei artes marciais, aprendi a lutar boxe, aprendi a atirar… Tinha uma fantasia de ser capaz de fazer tudo isso. Foi divertido!

 

E será que Matt Damon consegue fazer tudo longe dos sets?

Talvez não tão bem quanto Jason Bourne.

Pergunto como ele compara filmar em Hollywood e na Europa.

Foi diferente porque Doug (Liman, o diretor) sabia que as maiores críticas aos filmes americanos feitos na Europa é que eles parecem feitos por turistas. Ele se empenhou em contratar equipes locais, o que influenciou muito no resultado, na fotografia. Ao invés de colocar a Torre Eiffel ou o Museu do Louvre em cada cena, filmamos em ruas e bairros escondidos, que não aparecem muito no cinema. Ficou tudo mais real.

 

Comento que ele tem elogiado bastante o trabalho de Doug Liman.

Eu adorei o script já na primeira leitura. Mas acho que se o diretor não fosse Doug, mas outro cineasta mais acostumado a esse tipo de ação, o resultado poderia ter sido um filme cheio de clichês.

 

Qual seria a diferença?

Doug vem da produção independente, tem uma sensibilidade única. Acho que ele procura mostrar o que não tenha sido visto antes, acho que essa também foi a intenção de Tony Gilroy (roteirista). Eles queriam fazer um filme que atraísse o público, mas ao mesmo tempo original. Por exemplo: na sequência em que estou sendo perseguido dentro do Consulado, jogo a arma no lixo e escapo usando um rádio e um mapa, ao invés de sair atirando em todo mundo! São coisas inteligentes que não se vê muito, mas que fazem sentido. Quando percebi o que sairia dessa combinação entre Gilroy e Liman, decidi que queria fazer parte desse projeto.

Meu segundo “encontro” com Matt Damon durou uns dez minutos. A estrela ali na minha frente é o mesmo menino que vi querendo ajudar um estranho – simpático, sincero, “real”. Me despeço lamentando, porque tinha assunto para um dia inteiro. Quando vou em direção à porta, ouço dele:

Então… a gente se vê um dia destes, numa loja de conveniência…

 

Eu viro, sorrio, e esqueço de que continuava caminhando – dou de cara na parede! Saio meio zonza – exatamente como se tivesse andado de montanha-russa! Depois, o pecado da gula. Termino minhas entrevistas e passo na suíte da recepção para pegar minha bolsa e devoro um daqueles morangos enormes cobertos com chocolate que eu tinha namorado de manhã cedo. Matt Damon e morango com chocolate… É, a vida pode ser bela!

 

Entrevista feita em Los Angeles, no ano de 2002, às vésperas do lançamento de A Identidade Bourne nos cinemas.

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é jornalista. Morou durante mais de uma década em Los Angeles, onde foi correspondente para TV e revistas especializadas em cinema. Atualmente faz Mestrado em Relações Internacionais, em Porto Alegre. Escreveu roteiros para documentário e curtas, um deles premiado com o Candango do Festival de Brasília.
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