John Cameron Mitchell gosta de se divertir. Nascido em 21 de abril de 1963 na cidade de El Paso, Texas, EUA, logo se mudou para Nova Iorque, onde tem construído uma carreira bastante diversificada como ator, diretor e cantor. Seu trabalho de estreia como realizador, Hedwig: Rock, Amor e Traição (2001), lhe rendeu reconhecimento internacional e é também o motivo porque, quase uma década depois, ele está de volta ao Brasil. Mitchell tem uma apresentação marcada para o dia 24 de novembro de 2012 no Rio de Janeiro, quando irá cantar as canções de Hedwig. Com ele estarão também Paul Dawson e PJ DeBoy, que são colaboradores do artista desde Shortbus (2006), sua segunda experiência por trás das câmeras. A vinda de John Cameron Mitchell ao Brasil, nove anos após sua primeira passagem por aqui, tem como principal motivo o sucesso da montagem teatral de Hedwig e o Centímetro Enfurecido, versão nacional do musical de sucesso em cartaz desde 2010, quando estreou com Paulo Vilhena e Pierre Baitelli como protagonistas. E aproveitando essa visita, o Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre seus trabalhos anteriores, suas relações com divas como Nicole Kidman e Madonna, e ainda investigamos qual a verdade por trás de um aguardado Hedwig 2! Confira!

 

Vamos começar falando sobre seus principais trabalhos. Quando vi Shortbus pela primeira vez tive um grande impacto, é um filme revolucionário…
Pois é, muita gente me diz isso. E é sempre bom ouvir. Muito obrigado. A ideia não era provocar, e sim tratar da forma mais natural possível. É importante desmistificar essa questão do sexo ser um tabu. Faz parte das nossas vidas, eu faço sexo, você faz sexo, todo mundo faz sexo. O que há de estranho nisso? Essa era a proposta, e ainda hoje me intriga essa impacto do filme. Mas toda provocação é boa, pois nos incita à reflexão e ao questionamento.

Shortbus 

Quais são suas principais referências e inspirações?
Nossa, tudo pode servir como inspiração para a realização do meu trabalho. Hoje em dia, o que me importa é me divertir, é passar por boas experiências e tirar resultados positivos de tudo com o que me envolvo. Hedwig, por exemplo, nasceu do meu trabalho de ator, que foi como comecei. Queria ir além, sair do conformismo, e precisava de algo que me estimulasse. Encontrei tudo isso em Hedwig. Foi assistindo a um espetáculo do Robert Wilson, com músicas do Tom Waits, que me deu o estalo. Adoro todos os tipos de músicas, mas ali estava algo que falava comigo. Não queria fazer algo grandioso e vazio, não buscava uma ópera rock, tipo Tommy (1975). Era preciso ter uma narrativa muito forte, pois tinha muito para contar.

 

E como foi a criação de Hedwig?
Hedwig começou como um exercício formal. A base veio das histórias sobre A Origem do Amor, de Platão, que serviram também para a canção principal do musical. Peguei muito também da minha própria vida, em família, dos drag clubs que frequentava na época, foi por aí que achei um caminho. Esse roteiro foi se formando dentro de mim durante anos. Era um desafio, e foi assim que o enfrentei até sua realização. Era mais forte do que eu, precisava se tornar realidade.

 

Com Shortbus o processo se deu de forma similar?
Shortbus também foi um exercício, mas com outro foco. Achava que o sexo não estava sendo avaliado de uma forma justa nas narrativas convencionais. O sexo quase sempre é pornografia, e onde fica o lado emocional neste tipo de trabalho? Sexo é envolvimento, é dedicação, é esforço, é entrega. E achei que tudo isso poderia ter espaço numa história séria, que refletisse o nosso tempo. O sexo, em Shortbus, é a linguagem principal, tem a mesma função que a música tinha em Hedwig. Foi muito difícil encontrar a equipe e o elenco correto, achar atores que aceitassem participar do filme e que entendessem essa proposta. Era um projeto sério, não pornografia.

Sooy-Yin Lee (centro) em Shortbus

Teve o caso da atriz Sook-Yin Lee, que quase foi proibida de participar do filme. Como foi isso?
E ela está excelente, não é mesmo? Isso aconteceu no Canadá, pois a CBC – que é tipo a NBC deles, ou a Globo aqui no Brasil – iria demiti-la se ela aceitasse participar do filme. A Sook atua como atriz regular nessa emissora, e os diretores acharam que se envolver em um projeto como esse prejudicaria a imagem dela, e naturalmente, a deles também. O bacana foi que aconteceu um movimento a favor dela, com o envolvimento de artistas como Gus van Sant, Atom Egoyan, David Cronenberg e Julianne Moore, entre outros, que protestaram contra essa atitude. No final deu tudo certo, felizmente, pois os canadenses são muito polidos, muito educados. Se fosse nos Estados Unidos tenho certeza de que teria sido bem diferente.

 

E como foi tratada a nudez em Shortbus? Há os comentados “sextras”, quando você e a equipe ficaram todos pelados para filmarem algumas cenas…
Foi exatamente isso, ficamos nus. Nos desnudamos, assim como o elenco. Com isso, igualamos a situação. Mas eram equipes reduzidas, e isso aconteceu em uma ou duas cenas, não foi no filme todo. E sempre nestas ocasiões estávamos com o estúdio fechado, sem interferências externas. Então foi um processo muito tranquilo. Estávamos todos juntos, editando e filmando. Eu até estava pelado, mas tinha tanta coisa com que me preocupar, com a direção, com a iluminação, que a última coisa que aconteceria seria me excitar. E muitos dos casais que aparecem no filme são reais, não era apenas encenação. Shortbus não é um filme para se assistir se masturbando – até tem quem faça (risos), mas aí é outra história…

 

Você hoje é reconhecido como diretor, mas começou atuando, tendo sido inclusive indicado ao Globo de Ouro como Melhor Ator por Hedwig. Você prefere atuar ou dirigir?
Não foi uma experiência muito divertida dirigir a mim mesmo (em Hedwig). Tinha que me maquiar, me montar, decorar as falas, e ainda me preocupar com a iluminação da cena, com o desempenho do resto do elenco. Foi muito difícil, um verdadeiro inferno. Emocionalmente foi muito desgastante. Não conseguia aproveitar o que estava acontecendo ao meu redor. Fiquei muito feliz com o resultado, mas não é algo que quero repetir tão cedo. Por isso passei mais de dez anos sem atuar. Mas aos poucos isso está voltando, e estou com uma ideias para Hedwig 2, então talvez seja o momento.

John Cameron Mitchell em Hedwig

Hedwig 2? Uma continuação? Como assim? O que já pode adiantar a respeito?
Não posso falar muito, está ainda num estágio muito embrionário. Mas está começando, e creio que vai acontecer. A primeira metade das nossas vidas passamos tentando nos encontrar, e isso é o que reflete o filme original. Mas depois que achamos que está tudo bem, que pensamos estar mais centrados, perdemos todas as nossas certezas, num processo de desconstrução. Sobre isso será o segundo filme. Será ainda muito engraçado, com bastante humor, mas trata-se de uma viagem muito mais interna, algo bem mais pessoal.

 

Tudo bem não querer mais se dirigir, mas durante todo esse tempo você não recebeu convites de outros diretores para atuar?
Ah, claro, vieram vários convites. Fui chamado para ser um dos X-Men, e também para beber um milk shake em Sangue Negro (2007)… mas recusei todos, cansei de atuar, prefiro dirigir (risos)! Agora estou voltando a me exercitar como ator, então quem sabe? Mas precisa ser algo especial, que me envolva. Preciso aproveitar. Fiz há pouco uma participação em um show de televisão da HBO, o Girls, e foi divertido. Adorei participar. Se surgirem outros convites nesse nível, sem muito comprometimento, mas ainda assim interessantes, é claro que irei pensar a respeito.

 

Há alguns anos, quando Shortbus foi lançado no Brasil, entrevistei Jay Brannan, que esteve por aqui acompanhando a estreia do filme. E além de atuar muito bem, ele é um ótimo cantor, e isso aparece também em cena. Percebe-se que você é bastante aberto à todo tipo de colaboração, não?
O meu trabalho é sempre muito colaborativo. Todos os atores me ajudam muito, sou muito aberto à improvisações. É preciso que estejam todos muito relaxados, que sejam meus parceiros durante todo o desenvolvimento do trabalho. Eles estão ali, se expondo, numa entrega física e emocional, e preciso confiar neles tanto quanto confiam em mim. Precisam se sentir seguros. Então, quando descobri que o Jay era um ótimo cantor, soube na hora que precisava mostrar isso no filme. Qualquer talento tem sua importância, e todo mundo tem algum. Basta encontrá-lo.

JCM e Nicole Kidman no set de Reencontrando a Felicidade

Vamos falar agora um pouco sobre a sua terceira experiência enquanto realizador, o dramático Reencontrando a Felicidade (2010). Foi uma mudança e tanto de registro…
Como ator já havia trabalhado nos mais diversos estilos. E, no meu ponto de vista, Hedwig e Reencontrando a Felicidade não são tão diferentes assim.  Meus diretores favoritos são os mais ecléticos, sempre admirei cineastas como Robert Altman ou Sidney Lumet, que transitavam com tranquilidade por todos os gêneros, e com resultados impressionantes. Com Reencontrando a Felicidade, o que aconteceu foi que a história me tocou. Fiquei muito envolvido com aquela mulher, essa personagem que perdia o filho e não sabia como seguir adiante. É um sentimento que nunca vivenciei, mas em um certo aspecto falou direto comigo. Foi impressionante. E sem falar que a Nicole é fantástica, a oportunidade de trabalhar com ela não poderia ser desperdiçada.

 

Ela que lhe convidou para esse filme?
Sim, ela havia comprado os direitos da peça e me convidou para dirigir. Já estávamos conversando há algum tempo, ela havia assistido ao Hedwig e gostado muito. Na verdade vários outros convites haviam sido feitos nesse meio tempo, mas sempre tinha algo que não fechava, ou era a agenda dela, ou a história não me despertava atenção. No entanto, quando Reencontrando a Felicidade surgiu, tudo se conectou. Foi uma experiência muito positiva, tenho muito orgulho do resultado.

 

E como foi trabalhar com Nicole Kidman?
A Nicole é maravilhosa. Somos amigos, nos demos bem desde o princípio. Adorei trabalhar com ela. Se o filme, se o texto, é ruim, nada poderá salvá-lo, nem o melhor ator, nem o melhor diretor. Mas com certas pessoas tudo funciona, independente do resultado. Então, antes mesmo do filme estar pronto já estava satisfeito. Ela é muito tímida, não é de chegar contando piadas e abraçando todo mundo. É uma pessoa muito reservada, mas ao mesmo tempo muito querida, calorosa. Te ouve, pede conselhos, e sempre tem algo para contribuir. Antes de tudo começar estive um pouco nervoso, pois sabia o que queria, sei como agir com atores, afinal sou um! Mas como passar isso para uma vencedora do Oscar? Felizmente, ela confiou em mim, os produtores também, todos tinham suas ideias, muitas que eu mesmo não havia pensado, e essa troca só trouxe resultados positivos para o filme. Foi difícil não ter a palavra final, pois o filme era dela, não meu. Mas deu tudo certo.

O que lhe chama atenção ao escolher um novo filme para se envolver?
Eu preciso saber que vou me divertir. Não pode ser algo doloroso. Se não encontro nada atraente neste sentido, faço outra coisa. Depende também muito das pessoas, de com quem irei me envolver. Preciso estar entre amigos, quero me divertir. Tudo é uma experiência, mas se o texto não for bom e as pessoas não forem as certas, não vejo o porquê. Prefiro fazer comerciais ou teatro ao invés de um filme que não gosto. Consigo sobreviver muito bem com a publicidade, não tenho essa urgência. Então fico tranquilo, fazendo o que sei e desenvolvendo minhas próprias histórias, na torcida para que um dia elas ganhem vida.

 

E quais são seus próximos projetos no cinema?
Pois então, estou envolvido com várias coisas diferentes. Estou supervisionando um roteiro que está sendo reescrito, baseado numa história do Neil Gailman, que combina punk rock com aliens, algo bem engraçado. Se passará durante os anos punk em Londres, com muita música. Tem também um programa de televisão que desenvolvi, tem um filme de animação, há um vídeo musical que foi exibido neste ano em Sundance… Muitas coisas pequenas, cada uma com o seu valor. Mas Hedwig 2 é o mais importante agora, é nele que minhas energias estão concentradas.

 

Uma curiosidade: você participou do elenco de Garota 6 (1996), comédia do Spike Lee, ao lado de Madonna. Como foi trabalhar com a diva pop?
A Madonna está neste filme? (Risos) Sério, nem lembrava! Bem, tenho duas falas em toda a trama, assim como ela e mais um monte de gente. Esse filme é repleto de pequenas participações. Mas, para ser sincero, não gosto da Madonna. Considero-a sem alma, uma artista que hoje em dia não fala mais comigo. Aprecio, claro, seu trabalho, principalmente nos anos iniciais, e reconheço sua luta pelos direitos relacionados ao movimento gay, pois todo apoio neste sentido é importante. Mas não gosto da música dela, ela não é minha amiga, não tenho o que dizer. A Madonna começou no início dos anos 1980, e na mesma época surgiu a Cindy Lauper. As duas eram meio que rivais, os fãs se dividiam entre uma ou outra, e eu sempre fui muito mais Cindy Lauper!

Pra finalizarmos, o que tem achado do Brasil?
Está tudo ótimo, esse país é fantástico. Estou aproveitando muito o Rio de Janeiro, a praia de Ipanema, é tudo muito alegre (gay) por aqui. Sou a pessoa mais branca na praia, então tenho que passar muito bronzeador e me cuidar para me integrar à população local (risos). Estive no Brasil nove anos atrás e tudo está muito diferente agora. Tudo muito mais evoluído, como uma flor desabrochando. Sabe, quando o Jay Brannan esteve em Porto Alegre, foi me substituindo, pois o convite era para mim. Como tive que cancelar de última hora, ele foi no meu lugar. Pode ser esse agora o meu próximo destino, conhecer melhor o sul desse grande país.

(Entrevista feita por telefone, desde o Rio de Janeiro, onde se encontra John Cameron Mitchell, no dia 23 de novembro de 2012)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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