Clichês, por mais chatos que soem, acabam, vez ou outra, aparecendo no nosso cotidiano. Fugir da máxima ”por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher” pode parecer complicado. Logo, optamos aqui por reinventá-la. Um homem só se torna grande quando observa e absorve o que lhe oferece uma grande mulher. O cineasta Yasujiro Ozu, um dos mestres do cinema japonês, ao lado de nomes como Akira Kurosawa e Mikio Naruse, levou a banalidade rotineira das famílias japonesas de classe média às telas. E ele deve muito da admiração de seu público a uma mulher. Setsuko Hara, falecida em 2015, integrou o elenco de seis filmes de Ozu, sempre interpretando o mesmo papel. Parece um paradoxo falar do talento de Hara como atriz e afirmar que seu personagem não mudava. Porém, esse é um dos mistérios de Ozu que a japonesa ajudou a construir.

Um primeiro contato com a obra de Ozu, principalmente se o espectador não está familiarizado com o ritmo do cinema oriental, rende ideias de que nada acontece nas tramas. Chamar de “nada” o cotidiano é quase uma afronta. Ozu sabe que boa parte dos nossos dias é composta de afazeres e acontecimentos que pouco têm de extraordinários. Acordar, preparar a comida, ir às compras, sair para trabalhar. Ao folhearmos uma agenda, parece um tédio. Ozu busca a poesia nessa eterna repetição. E quer maior símbolo da rotina na sociedade japonesa que a mulher? Por mais que algumas personagens de Hara tivessem empregos, havia sempre o momento de voltar para o lar e seguir realizando trabalhos. A mítica ideia da arte de cuidar ligada ao feminino é expandida ao extremo em Ozu. Hara é a imagem da filha, da esposa, da nora, da mãe que toma conta de todos, menos de si. A resignação é outra constante que o olhar de Hara emana. A boa mulher japonesa, quieta, de gestos suaves e proferindo dezenas de pedidos de desculpas por deslizes imperceptíveis. É assim a nora carinhosa de Era Uma Vez em Tóquio (1953).

Setsuko Hara abandonou a carreira de atriz com pouco mais de quarenta anos. Saiu de cena logo depois de interpretar Akiko em Fim de Verão (1961), conto de Ozu sobre uma família às voltas com o caso extraconjugal do pai. Sua personagem é icônica para a mulher japonesa: viúva e com um filho pequeno, ela ouve de todos os familiares e amigos que precisa casar-se novamente. A única que parece não se importar com o estado civil de Akiko é a sua irmã mais nova, Noriko, interpretada por Yoko Tsukasa. Ambas são cobradas a assumir, por motivos diferentes, o desejo do casamento. Com delicadeza aliada à maturidade, Akiko segue ignorando com elegância a cobrança da sociedade e influenciando, de maneira sutil, as escolhas de Noriko.

Coincidência ou não, Setsuko Hara nunca se casou, assim como algumas de suas personagens. Escolheu o caminho mais pesado para uma mulher da sua era, tornando-se um símbolo, um retrato das moças japonesas dos anos 50 e 60. Se Ozu sabia conduzir suas tramas, muito da densidade dos filmes por ele assinados está na sutileza de Hara. Diversas são as mulheres que assistem a seus longas e interpretam muito mais que servidão nos atos. Ater-se aos cuidados domésticos parece um castigo para muitas mulheres, mas Hara os realiza com um sorriso no rosto, fruto de sua alma jamais domesticada. Foi brilhante em sua profissão, desfrutou do sucesso e retirou-se sem preocupar-se com os comentários. Teve a vida que escolheu. Ozu, um dos maiores homens do cinema japonês, deve sua grandeza a uma mulher pequena no tamanho, mas gigante em significado. Se soa machista para a nossa geração vê-la recebendo ordens de um homem, devemos lembrar que, mesmo debaixo do vendaval, ela seguiu seu coração. E ele é selvagem assim como o de outra grande mulher que viveu bem longe do Japão, mas escreveu livros que Hara e suas personagens iriam adorar.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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