O que torna um cineasta digno do título de original? Há quem acredite que tem a ver com sorte, talento ou esperteza, e o que conta mesmo é conhecer as pessoas certas. O norte-americano John Cassavetes era original ao tratar das excentricidades da alma de pessoas comuns, sem nenhuma genialidade aparente. O ator/diretor gostava do lado menos brilhante da vida, em que as nuances de cinza são mais visíveis. O que tira os mortais do eixo, o que machuca, o fundo de nossas decisões erradas, aquilo que não se consegue explicar com ciência, era o que mais lhe interessava. Ou, nas palavras do mesmo numa citação do livro Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano, de Martin Scorsese e Michael Henry Wilson: “Só tem uma coisa que me interessa. O amor”. É provável que ele tenha descoberto seu tema predileto após conhecer a pessoa certa. E seu nome é Gena Rowlands.

Além de parceira das telas, Gena também era esposa de Cassavetes, e não é exagero dizer que os melhores trabalhos do cineasta devem muito à presença da atriz. O título de protagonista, nestes casos, vai além do destaque nos créditos e da constância em cena. Gena, assim como todo ator numa obra cassavetiana, colaborava na criação da forma de suas personagens. O roteiro e os diálogos existiam, mas havia uma liberdade para moldar, ao seu bem entender, os gestos e as reações das intensas mulheres que lhe eram concedidas. Ao surgir em cena, Gena acrescentava uma força impossível de se imprimir numa folha de papel. Por ouvir e dar voz a ela, Cassavetes fez Uma Mulher Sob Influência, em 1974. Mabel, personagem de Gena no longa, é descrita em algumas críticas, e até pela própria atriz em entrevistas, como louca. Mas basta um olhar mais dedicado para perceber que o adjetivo que lhe é dirigido é uma fuga do público. Mabel é humana e age como tal. Explode, dança, grita, busca agradar, experimenta, questiona os filhos sem a arrogância típica dos adultos, joga de igual para igual com os pequenos. Ou seja, rompe com aquilo que um dia alguém definiu como comportamento adequado.

A interpretação de Gena é tão forte, que é preciso assistir mais de uma vez a Uma Mulher Sob Influência para perceber que, ao seu lado, temos Peter Falk num grande momento. Nick, marido de Mabel, é quase uma continuidade da esposa, porém com maior dificuldade de expressão. Se as mulheres lutam até hoje para que sua sensibilidade seja respeitada, os homens ainda não entraram na briga pelo direito às lágrimas. E isso se nota nas sequências em que Nick fica sozinho com os filhos, após ceder às pressões da mãe e internar Mabel nunca clínica psiquiátrica. Confuso, age como se aquelas crianças fossem estranhas. E são. Quem passa a maior parte do tempo com eles é Mabel. Por não saber lidar com as próprias crias, vem a frustração. O “homem da casa” se descobre um fraco. E a saudade que sente de Mabel não é apenas para os cuidados domésticos. Falta-lhe um pedaço. Ele também foge do dito padrão e talvez busque a mesma coragem presente em sua mulher para expor isso. A sociedade machista impôs a lei de que homens confusos estão cansados e mulheres confusas são doentes. Cassavetes manda tal lei por água abaixo.

Óbvio que Mabel interessa muito mais ao público feminino, já que a identificação é imediata, tenha a espectadora 20 ou 80 anos. Entendemos aquela mulher, só não sabemos muito bem explicar o porquê. Qual de nós nunca segurou o verbo e sustentou o olhar ao ser repreendida por ter uma atitude não tão dócil? Sim, não nascemos desconstruídas e a ferida é tão aberta que talvez cheguemos à velhice ainda nesse processo. Mabel fala por nós. Dados os limites da ficção, nos enxergamos como mães, filhas, esposas, como gente por meio das crises que Gena Rowlands interpreta de forma única. Seu auge é um monólogo em plena sala de estar, no qual deixa claro que se uniu a Nick devido às suas semelhanças com ele. Mesmo que todos a chamem de maluca, em especial a sogra que está sempre inventando uma doença para chamar a atenção do filho, Mabel sabe que Nick entende o seu modo de levar os dias. Num diálogo logo no início do longa, Nick diz que ela é incomum. E é. Todas somos. Não são os machistas que vivem reclamando que mulher é tudo igual? Por que, então, tanto medo de uma que se mostra diferente? A prova do amor de Nick se dá quando Mabel volta da temporada no hospital. Ao perceber que a esposa está “agindo normalmente”, ele acaba com a festa de boas-vindas e implora pela volta da Mabel pela qual é apaixonado. Aquela que todos chamam de louca.

Três anos depois de Uma Mulher Sob Influência, John Cassavetes presentearia Gena com outra grande personagem, Myrtle, a prima donna do teatro em Noite de Estreia (1977), que domina o palco como poucas, mas se vê diante do desejo de subverter o destino de seu papel numa peça, por não concordar com as decisões dela. Está cansada de interpretar, quer atuar, no sentido de ser atuante, presente, criativa, dona da própria história. Lembra muito a vontade que move milhões de vozes femininas caladas mundo afora, por questões que vão muito além do gênero. Envolvem cor da pele, sexualidade e classe social. Mabel e Myrtle podem parecer distantes dessas realidades, mas são simbólicas. E existem por causa de Gena. Cassavetes dirigiu, montou, escreveu, mas a assinatura final não é apenas sua. A influência da esposa e, antes de tudo, parceira de arte, é nítida. Ela foi o grande amor de Cassavetes. E amor era tudo que interessava para ele.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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