Há quem credite ao espanhol Pedro Almodóvar o título de cineasta que melhor retrata as mulheres na tela grande. Não é de todo errada essa afirmação, já que os tons de vermelho e suas protagonistas passionais permitem muita identificação por parte do público feminino. Apenas uma parte, já que, ao contrário do que pensam alguns, mulheres não são uma massa homogênea. Deixando as chicas de Almodóvar um pouco de lado, a chamada Trilogia da Incomunicabilidade, composta dos filmes A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962), realizada pelo italiano Michelangelo Antonioni, é lembrada por seus casais de protagonistas, todos vivenciando situações limítrofes. No entanto, são as personagens femininas que se destacam dentro dos enredos, agindo como fios condutores e também enquanto símbolos de como é complexo para os homens compreenderem o funcionamento da alma feminina. Quando me refiro à alma, não é apenas na dimensão romântica do termo, mas no que tange às diferenças, comprovadas, existentes entre os cérebros masculino e feminino.

Teorias à parte, a Trilogia da Incomunicabilidade declara a admiração de Antonioni pela complexidade feminina. Em entrevista presente no documentário Michelangelo Antonioni: O Olhar Que Mudou o Cinema (2001), produzido pela TV italiana Rai, o diretor afirma que as mulheres possuem mistério, sendo muito mais sutis na demonstração do afeto que os homens. A fala justifica uma constante das personagens femininas da trilogia, que é a intensidade velada dos sentimentos. Suas falas são repletas de perguntas com as quais os intérpretes masculinos parecem não poder lidar. Na criação de Antonioni, os homens circulam confusos diante das dúvidas e atitudes das mulheres.

Em A Aventura, Claudia (Monica Vitti) se envolve com o noivo de sua melhor amiga após ela desaparecer durante um passeio de barco. Enquanto um misto de desejo e culpa paira sobre as atitudes de Claudia, Sandro (Gabrielle Ferzetti), o noivo que se mostrava apaixonado, age como se nunca tivesse amado outra pessoa a não ser ela. O sumiço da noiva parece não o ter abalado, a ponto de, durante a procura pela moça, ele propor casamento ao seu novo amor. A reação é filmada com maestria por Antonioni, que esconde o rosto expressivo de Vitti do espectador quando ela responde ao pedido. Por não saber qual reação seria mais verossimilhante, o cineasta opta pela incógnita. Nadando na contramão dos colegas de trabalho, que constroem personagens calcadas no que um homem entende por ser uma mulher, o italiano expõe sua fraqueza. Por não compreender completamente as sutilezas femininas, coloca seus homens em silêncio.

A quietude se aprofunda em A Noite, no qual a dupla central está no caminho inverso da de A Aventura. Casados há 10 anos, Lídia (Jeanne Moreau) e Giovanni (Marcello Mastroianni) circulam juntos pela alta sociedade de Roma, mas parecem dois estranhos quando sozinhos. As conversas não encaixam, os olhares não se encontram e o desconforto de dividir o mesmo ambiente é visível até para o mais desatento dos mortais. Na festa luxuosa em que se passa a maior parte do longa-metragem, ambos buscam em outras pessoas um pouco de alento. As traições não se concretizam, fazendo o espectador perceber que o casal não deseja corpos e cheiros diferentes, mas respostas.

Por que o amor acabou? Por que, prestes a beijar outrem, Lídia pensa em Giovanni e vice-versa? Aliás, Giovanni é o que melhor disfarça sua confusão de sentimentos. Ou, talvez, apenas não entenda o que acontece consigo. Antonioni, mais uma vez, cria um homem que, por machismo ou medo, não quer expor o que realmente move seus atos. Seu interesse recai sobre Valentina (Monica Vitti), semelhante à Lídia em sutileza. Sua juventude “engana” Giovanni, que espera vigor e desimpedimento, mas é desvendado por ela em poucos minutos da conversa trivial confundida com sedução. Enquanto um triângulo se forma, sem o intuito amoroso, mas para iniciar uma dança de desejos e verdades não ditas, a festa continua e é nela que Antonioni dilui os assuntos abordados, mas que não cabem na relação de Lídia e Giovanni. Champanhe à vontade, um trio de jazz animando o ambiente e dezenas de convidados buscando diversão a qualquer custo. Pular na piscina, dançar loucamente, inventar jogos. Como na canção dos Rolling Stones, nada parece trazer satisfação. Mais que isso, eles não sabem o que querem. A vida sem problemas financeiros é destituída de sentido, já que tudo está ao alcance de algumas liras. Quando a longa jornada noite adentro acaba, a ressaca não é causada pelos drinques, mas pelo não dito. Lídia está em eterno suspirar. Algo está engasgado, mas como dizer? Ao invés de sugerir soluções, Antonioni planta a dúvida. Giovanni quer recomeçar do zero, Lídia sabe que isso é impossível. Por pior que seja a memória, sempre sobra uma cicatriz para lembrar.

Um ano depois de conquistar o Urso de Ouro no Festival de Berlim, com A Noite, Antonioni chamou mais uma vez sua musa Monica Vitti, agora para protagonizar o desfecho de seu tratado sobre os desencontros de fala e de amor. Na cena de abertura de O Eclipse, uma das melhores já dirigidas por Antonioni, Vittoria vaga pelo apartamento do namorado procurando um disfarce para seu nervosismo. Ajeita os bibelôs sobre a mesa, caminha ao redor do sofá, observa o amado se barbear. Sem dizer uma palavra, Vittoria entrega sua vida ao público. Não há amor naquele cômodo e nem dentro dela. É decretado o fim. E, como todo final, é preciso romper a calmaria, adquirir fôlego. Vittoria encontra isso em Piero, interpretado por Alain Delon. Lindo e jovem, ele parece ser a saída para o vazio. Mas quem disse que olhos brilhantes não escondem almas escassas? Piero tem ânimo, mas falta-lhe a intensidade que Vittoria tanto deseja. Nas ruas de uma Roma agitada, os dois tentam fazer vingar um romance com potência. Cenas de sexo não são a marca registrada do cinema de Antonioni, mas há erotismo nos gestos de Vittoria, assim como nos de Claudia e Lídia. O diretor da incomunicabilidade sabia que o desejo feminino precisa de muito mais que um toque para ser aflorado. A lua diante do sol, que escurece o dia, acontece também dentro das mulheres. Eclipse para além da metáfora. Ou seria apenas uma coincidência que todas as mulheres da trilogia, em algum momento, usem vestidos pretos? Luto? Não, reflexo das almas.

O Eclipse não é um ponto final, como nenhum dos trabalhos do cineasta. É vírgula em início de frase, bem ao gosto da escritora Clarice Lispector, uma mulher das letras que podia muito bem estar nas telas de Antonioni, sutil e misteriosa, como ele, e seus filmes, acreditam que todas nós somos.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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